para quem não conhece a n2 não é apenas o número pela qual se designa este pedaço de terra alcatroado que nos leva de terras mouriscas de regresso ao alentejo. um caminho desbravado pelos homens no meio da serra. a unir gentes. de quando em vez e sempre que é o sentimento quem me guia parto ali de são brás em direcção a almodôvar. é já quase uma espécie de peregrinação até atingir o pico. eu sei que não estamos nos himalaias, mas o miradouro na serra do caldeirão ao fim desses quilómetros de curvas e contracurvas, é uma espécie de tecto do mundo. às vezes estas aves a planar também nos fazem lembrar no outro lado do atlântico, o condor nos montes andinos, nessa terra irmã, de nome américa, mas latina.

quiseram os homens em tempo útil que lhe chamassem de património. é um nome bonito. estrada património. quando sabemos que são os afectos, o trabalho, a generosidade, a luta diária pela sobrevivência, o que caracteriza as poucas almas que vão pintando aqui e acolá cada monte, cada vale. há um património que trago, que recebo, de cada vez que a atravesso, em cada aceno, em cada rosto, em cada ruga, em cada sorriso, em cada gota de suor que a terra absorve dos que a cavam como nos tempos mais antigos.

cada estrada tem a sua particularidade. o seu percurso de vida. tal como todos nós. a sua infância. a sua adolescecência. a sua maturidade. e a sua velhice até definhar. e ser substituída. às vezes desaparece. apenas fisicamente. não a vemos. mas ela está lá. nas memórias que ficam. quando as suas bermas se enchem de vida. de côr. onde sempre começam todos os mercados. de facto na berma da estrada tudo se compra e tudo se vende. a história está cheia de estórias de mercados ao ar livre. quando se transformam esses pedaços de terra alcatroados em romarias periódicas. é isso que são as feiras espalhadas por esse pais fora. romarias. seja de fato de gala. seja de regresso à grande cidade. quando há sempre uma paragem para a melância em grândola. o melão em almeirim. castanhas em marvão ou batatas nas terras fertéis da apúlia.

tal como existirão sempre laranjas e gente a discutir preços em boliqueime. lado a lado com quem vende o corpo. em cada estrada cruzam-se sonhos. unem-se vontades. mas também a miséria. com que pautamos os nossos valores. aqui há gente que se quantifica. que materialmente se quantifica. é por isso que quando subo a serra ainda levo o sorriso e o aperto de mão que me marca. dessa gente na berma da estrada, onde sempre paro para comprar laranjas e em que faço questão de discutir preços. quando lhes dou o dobro do que está tabelado. porque merecem. mas sobretudo porque o luis, chamemos-lhe assim, naquele momento sorri ao perceber que ainda há quem entenda o valor de cada gota do seu suor e das mãos apesar de jovens, calejadas de quem trabalha a terra.