Fica a 3400m de altitude, no Peru, e chamam-lhe o umbigo do mundo. Os espanhóis, comandados por Francisco Pizarro, saquearam-na, roubando-lhe os seus tesouros mais preciosos, e a igreja católica achou por bem destruir os antigos templos incas para construir as suas próprias igrejas. Esse legado surgiu-me pela frente, na praça principal, a Plaza de Armas, e descobri-o com a sensação de calcorrear uma Andaluzia de outros tempos. Foi uma surpresa completa encontrar uma cidade digna de Dom Quixote de La Mancha no meio das altas montanhas andinas.

Ao sair do hotel, desci a estreita encosta da rua San Blás e depois da esquina do Museo Religioso, cortei na direcção do Museo Pré-colombiano. Apesar do frio matinal, os pedintes já ocupavam o seu lugar, de modo a garantirem a jorna do dia. Os vendedores de rua também já se tinham instalado propondo o seu artesanato aos turistas madrugadores. A vida social e económica começa muito cedo em Cuzco, logo que a claridade desperta porque os dias são curtos e o frio enregela os ossos assim que o sol se põe.

Visitei o museu Pré-colombiano, uma obra de uma beleza e orgânica exemplar. Apesar do interesse artístico, o que despertava a cobiça dos visitantes era sobretudo a secção dos tesouros. Afinal, foi pelo ouro que os espanhóis se lançaram pelo mar fora. O Eldorado fantasiado no imaginário dos homens de Quinhentos. Já Voltaire falava de um país onde bastava uma pessoa curvar-se para apanhar pepitas do chão.

Praça de armas em Cuzco com Catedral à esquerda e Igreja jesuita à direita.
Praça de armas em Cuzco.
© Christophe Meneboeuf ( CC BY-SA 2.5 )

Ao sabor do empedrado das ruas estreitas, encontrei o Museo Inka. Um museu instalado num antigo palacete castelhano, com o seu típico pátio central rodeado por varandins de madeira. No interior, muita informação, muitas peças, desde as culturas pré-incas até à conquista espanhola. Entrei depois na catedral, uma obra-prima de elegância castelhana. O que mais me despertou a atenção foi a figura de um Cristo negro, enviado por Carlos Quinto, para combater os terramotos que nessa época já se faziam sentir em toda a região. Atravessei a Plaza de Armas e dirigi-me para o convento de La Merced. Um claustro lindíssimo, com altas colunas bordadas de pedra cor-de-rosa, aguardava-me. Não havia quase ninguém. Apenas um pedreiro efectuava trabalhos de restauro. Numa sala aberta ao público, uma fabulosa custódia, quase da minha altura, toda revestida a ouro e pedras preciosas. A famosa custódia, anunciada pelos guias peruanos como sendo a mais bonita do mundo.

Rua Hatun Rumiyoc com paredes feitas de grandes pedras e onde está a famosa pedra dos 12 ângulos.
Rua Hatun Rumiyoc.
© _e.t ( CC BY-SA 2.0 )

Lá fora, um céu muito azul banhava o ar frio de Cuzco. O trânsito intenso circulava à volta da Plaza de Armas. Muita gente apinhada nos passeios, o comércio efervescente, filas e mais filas às portas das repartições públicas, um constante pulsar de corpos em movimento.

Após o almoço, passei pelo convento Santo Domingo que foi erguido sobre a Coricancha, um antigo templo. Um elegante claustro colonial esperava-me mas o que mais surpreende qualquer visitante são os vestígios incas que ainda se encontram em perfeito estado de conservação. Alinhamento perfeito dos muros, linhas bem definidas, quase traçadas à régua, a irrepreensível inclinação da estrutura das portas, o polimento das pedras. Nada de muros toscos e mal-arranjados. Uma perfeição de equilíbrio e de formas geométricas. O que os espanhóis mais apreciaram ao entrar neste palácio foi muito mais do que apenas a beleza das construções. Foi antes de tudo a enorme riqueza em ouro maciço que aqui encontraram. Por algum motivo se chamava a este local o “Recinto de Oro”. Mas aos invasores não lhes bastou apoderarem-se de toda a riqueza. Fizeram também questão de destruir o sítio. Nos vestígios do Templo das Estrelas, vê-se perfeitamente como quebraram as esquinas das portas de pedra. Pretendiam liquidar tudo o que recordasse a civilização inca. Dada a volumetria da obra, foi-lhes completamente impossível levar adiante tal façanha. Por isso, recorreram a outra técnica para apagar essa memória. Ergueram por cima dos templos os seus lugares de culto e assim nasceu o convento da Corincancha. Um edifício híbrido, meio inca, meio cristão, soterrado por detrás de muitas paredes, uma meia verdade que o terramoto de 1950 se encarregou de restabelecer, fazendo ruir toda a estrutura frágil de tijolos, pondo a nu a nobreza e resistência das paredes antigas.

Cruzamento no centro histórico de Cuzco.
Centro histórico de Cuzco.

Terminei o dia na famosa calle Loreto, uma estreita rua afecta aos peões, com as suas antigas muralhas, de pedra polida em forma de U. Encostado ao paredão, um pedinte pedia, outro tocava flauta, outro ainda engraxava sapatos. Mais à frente, virei à direita e subi até ao bonito arco de Santa Clara. Muito trânsito, muita gente nas ruas a passear, a fazer compras, muitos polícias ordenando o caos dos pequenos Daewoos. Afastei-me da multidão e quando me perdi no novelo de ruas estreitas, decidi seguir por um ruela apertada que me pareceu descer a caminho do centro. Enquanto caminhava sem rumo aparente, acabei sempre por descobrir uma praça mais bonita que a anterior, um jardim mais florido, ou uma arcada ainda mais formosa. Bastava deixar vogar o olhar para ficar maravilhado com os surpreendentes bordados das varandas de madeira, o belo gradeamento em ferro forjado das janelas ou os delicados candeeiros suspensos às esquinas das ruas, assim como admirar a curiosa arquitectura das habitações. Uma simbiose perfeita, com as fundações em pedra da época inca às quais se acrescentaram muros e telhados sevilhanos, tudo engalanado por flores coloridas nas portadas e o bom gosto decorativo na alma.

Cuzco foi uma cidade que descobri com imenso prazer mas o que me esperava para os próximos dias não me saia da cabeça. Nada mais nada menos que o sítio arqueológico de Machu Picchu, que pretendia alcançar percorrendo o trekking mais famoso de toda a América do Sul: o Caminho Inca, um osso que viria a revelar-se duro de roer.