Nas ruas e avenidas de Dakar há um movimento imparável de toda a espécie de objectos locomotivos e até um cão de porte pode servir de mula da cooperativa. O coro de buzinadelas amistosas que percorre a cidade como uma sirene intermitente é uma variante do harmonioso caos indiano. Os poucos estrangeiros que passam fazem os caminhos a pé, ou, dispostos à derradeira experiência étnica, alojam-se nas traseiras dos autocarros à pendura. De encher o olho, só a cidade religiosa e as suas modernas e opulentas mesquitas, a maioria patrocinada pelo rei Hassan II (94 por cento dos senegaleses são muçulmanos), que fazem vista no meio de um pobre casario. Os labirintos mercantis das cidades marroquinas não têm paralelo em Dakar, mas no seu lugar há um mercado prodigioso e de grande escala ao ar livre, que corre paralelo às estradas, e onde qualquer um concorre por um ofício de vendedor, de artigos de sapataria a bolos gordurosos. É lá também que se fazem as contrafacções de roupas de marca ou a revenda das dádivas pilhadas às Organizações Não Governamentais (ONG) – como soe dizer, o mercado negro. No colosso do mosaico mercantil, e a provar da dupla personalidade de cidade de comércio e cultura, há livreiros e alfarrabistas que não hesitarão em demorar-se horas à conversa. O senegalês, seja qual for a sua condição social ou o lugar do mapa onde habite, o mais certo é falar um francês cantado e escorreito, uma espécie de português de Copacabana ou de castelhano de Havana.

Numa destas rondas de feira, troco impressões com um livreiro de rua, um wolof de olhos de coruja e falar articulado repleto de alusões literárias. Tem o estaminé disposto numa tapeçaria sebenta que mais tarde recolherá como o mendigo que agarra o varapau, a sacola e segue viagem de vara e pertences às costas. Camus, Satre, Lautréamont, Sade e discursos de Agostinho Neto convivem no tapete com almanaques de pornografia tribal e revistas burda. É um livreiro disponível e atento às necessidades do cliente. Pergunta quais quero e recomenda-me o queniano Ngugi Wa Thiong’o (autor de não chores, menino), isto a propósito de uma conversa sobre povos africanos despojados. Falámos então sobre a presença portuguesa, e de uma amizade antiga entre os dois países. Afinal, os portugueses de quinhentos foram os primeiros europeus a estabelecer contactos comerciais com o Senegal – fundaram um povoado em Gorée, uma pequena ilha em frente a Dakar, hoje um ex-líbris das rotas turísticas.