Estou doravante a cargo de Manuss ou para facilitar a conversa “my nose”, um sherpa de nariz achatado que estudou gestão e japonês em Pondichéri. Arranhamos uns arigatos e uns sayonaras enquanto subimos uma ladeira íngreme a caminho do stupa, o templo fundado dois anos antes da II Guerra. Manuss casou há três meses e diz-me, com um certo embaraço, que teve de desposar a noiva antes das núpcias não fosse o pai causar impedimentos por diferenças de castas. Manuss quer ter dois filhos, um deles adoptado para ajudar simbolicamente a mitigar o sofrimento de milhares de vítimas. Fala das vítimas de orfandade que cobrem as ruas da Índia de Bombaim aos confins do Sikkim, onde me encontro, para conhecer a herança budista e da Velha Albion, além do Ecoss, um corajoso movimento ecologista que pretende salvar o Sikkim do turismo predador que já tentou devassar o vizinho Butão. Manuss é guia de trekkings na base do Kanchenjunga e conhece as proezas do alpinista João Garcia. “Um cabrito-montês, um sherpa de coracão”, como lhe chamam por ali, diz-nos entre umas goladas de chá de cardamomo no miradouro do hotel “Stay Well”.

No caminho entre Bagdogra e Gangtok (137km para 5 horas de jornada) Manuss irá contando as façanhas de outros indígenas. Por exemplo, a insólita fábrica de cerveja empoleirada numa colina de choupos pertence ao maior vilão de Bollywood, um sikkinês de cara em obras e bigode à Charles Bronson cujo retrato é mais popular do que qualquer autarca ou rimpoche (sacerdote budista). Entre os indígenas ilustres do Sikkim figura ainda o capitão da equipa nacional de hóquei em campo. Fico ainda a saber que partes do filme “Sete Anos no Tibete” foram rodadas na base do Kanchenjunga, a montanha sagrada, o Qomolonga (o Evereste) dos indianos.

A estrada que circunda as montanhas é um prodígio da engenharia inglesa aliada à emotiva condução dos chóferes indianos. Há tempo para tudo a rodar a 3km/por hora, para ler os dizeres nas paredes, de fundo pedagógico como “Relax. You are in a tension free zone”, ou de propaganda regional como “We are the Ultimate Ecotourism” ou “Growing Trees is a Sign of a Nation Prosperity”. Espera-me nessa noite um hotel que já foi hospedaria de convidados do rei. À chegada, há um séquito de empregados saídos do All England Cricket Club.

Monges budistas a jogar voleibol num terreiro com barreira feita de dois paus e uma corda.
Monges budistas a jogar voleibol.

Na rua a pique tem honroso estabelecimento um alfaiate de nome Saville Row que faz fatos e sarongs por medida. Em todas as lojas e atrás dos balcões há sempre um empregado descalço acocorado sobre um colchão que dormita entre porcos, ratos e galinhas enquanto a clientela vai e vem. A atmosfera é de bazar medieval ou de Shangri-la, ou de Bollywood rural. Os homens e as mulheres fazem trajectos distintos. Não se vêem casais de mão dada ou enlaçados nos bancos de jardim. A intimidade é uma relíquia guardada apenas para as alcofas. “Repara nos olhares”, diz Manuss. Penso nos homens bigodudos de Deli, de mão dada e abraçados como pares de amantes a palmilharem as ruas doces e risonhos. Ou na muita luxúria da miséria extrema das casas-sarjetas de Bombaim. O que é o amor na civilização do tantra e do kamasutra? Os casamentos de gente anónima, por exemplo, são acontecimentos de pompa pública. As festividades duram uma semana e toda a cidade, vila ou aldeia suspende o trabalho quando passa o cortejo nupcial. As pessoas são de uma alegria contagiante.