Caiu! O Muro caiu! O muro da vergonha, o muro opressor, o muro manchado de sangue. Foi no dia 9 de Novembro que se derrubou o Muro de Berlim. Esse foi o Outono de todas as esperanças para quase todos os dezasseis milhões de habitantes da República Democrática Alemã, ou RDA. Em alemão, DDR, que diz o mesmo, mas naquela língua. Para eles, o Ocidente seria um verdadeiro El Dourado, a terra onde a felicidade negada se encontrava e a que partir daquele momento teriam acesso.

Esta ilusão foi uma constante global em todos aqueles países que constituíam o que na altura chamávamos de Bloco de Leste. Os comunistas, o feudo da União Soviética, o inimigo. Mas as nações do Pacto de Varsóvia, entretanto dissolvido às pressas, logo se tonaram amigas. Com o tempo as gentes perceberam o logro. Do lado de cá não havia nenhuma fórmula secreta para obter a felicidade e as maravilhas do consumismo brilhavam menos quando vistas de perto.

casa semi-derrocada com vários grafites no centro de zittau
Casa semi-derrocada no centro da cidade.
© Ricardo Ribeiro

Mais tarde, na Alemanha que era do Leste, os festejos deram lugar à Ostalgie, aquela saudade de outros tempos, cujos pecadilhos eram perdoados à distância e por cujas vantagens se suspirava. Os mais velhos, esquecidos da omnipresença da STASI, passaram a ansiar pelo regresso do emprego garantido da DDR. Ou pelo menos aqueles que ficaram. Porque com a queda do muro, deu-se a debandada. Os que tinham família na Alemanha Ocidental foram-se logo. Os que não tinham também, desde que não lhes faltasse a genica para o fazer. Para trás ficaram os outros, por razões várias. Posso imaginar que os menos audaciosos, os idealistas do regime defunto. E os idosos.

Zittau é um símbolo desta desertificação de gentes e valores. No espaço de alguns meses a sua população passou de 60.000 habitantes para 25.000. Para trás ficou a poeira dos que partiram com toda a pressa em busca de uma vida materialmente melhor. E uma cidade quebrada, socialmente desarticulada, funcionalmente abalada. Vinte e cinco anos depois continuava assim.

Fui a Zittau com um grupo de amigos, quando residia ainda em Praga. Tinham-nos falado desta pequena cidade fronteiriça que simbolizava o fracasso da reunificação alemã, e logo a descrição me despertou a curiosidade. O resto da companhia iria e regressaria no mesmo dia. Eu, evoquei as maravilhas do Couchsurfing e encontrei um sítio para pernoitar.

frente de um prédico com detalhes da decadência urbana
Um detalhe da decadência urbana
© Ricardo Ribeiro

Primeiro, de comboio, para Liberec, bem no norte da República Checa. E dali, numa composição local, até Zittau, atravessando, quase sem o saber, o território polaco para alcançar a cidadezinha alemã.

Caminhar pelas ruas de Zittau foi regressar atrás dezenas de anos. As ruas tristes contam a estória do abandono. Casas devolutas, vidros estilhaçados. Era o quadro esperado de uma urbe esvaziada da sua gente. Claro que existem edifícios novos, imaculados. Mas numa escala anormalmente reduzida.

Algumas artérias da cidade forneceriam o cenário ideal para a rodagem de um filme dos anos 40, dos anos da guerra. Não mudaram muito, nem terão sido agraciadas com grandes obras de restauro. As paredes estavam escurecidas pelos fumos de escape entranhados durante décadas de tráfego.

Caminhámos até sair dos limites do perímetro urbano. Encontrámos o antigo quartel do Exército. Abandonado, claro. Ali se formavam os oficiais do corpo de tanques. É um enorme complexo, com casernas de diversos andares, corredores sem fins, centenas de salas. Explorámos as antigas oficinas, bunkers subterrâneos.

cadeiras numa caserna abandonada em zittau
Nas casernas abandonadas, como se dois fantasmas conversassem frente a frente
© Ricardo Ribeiro

O dia chegava ao fim. Despedi-me dos companheiros e procurei o meu anfitrião. Vivia sozinho com o seu cão, num prédio igual a tantos outros. A tantos outros da Alemanha de Leste. Um prédio onde os apartamentos partilham uma casa de banho comum localizadas nas escadas. Decrépito. O meu lar para a noite.

Ao serão conversámos. O meu anfitrião fez o percurso inverso. Enquanto meio mundo se passava do Oriente para o Ocidente, ele seria provavelmente a única alma de Zittau que tinha feito o movimento posto. Tudo fruto de uma herança, aquele apartamento. Não sei que vida levava em Frankfurt, mas não poderia ser pior que aquela que ali via. Era um homem quebrado pela vida, não sei porquê, não me contou tudo… apenas sobre a herança, que tinha vindo para a receber e agora ali estava. E como estava há vinte anos, tinha muito para me contar sobre aquela terra. Falou-me das assimetrias entre os Estados da Federação. Já tinha ouvido isto antes, em Dresden, de um professor que não achava piada nenhuma a receber 40% do vencimento de um colega de profissão na mesma situação na carreira… só que num Estado do Ocidente. As peças começavam a encaixar-se. Não admira o êxodo.

Mais fotos de Zittau – a preto e branco – numa galeria do autor: Ver aqui.