Com a semana a meio, e após os intensos dias da bem-sucedida ascensão ao Pic Longue Vignemale, acordámos para um novo dia e outro objectivo: o Monte Perdido.

Chegámos pelas 8h00 da amanhã a Torla, que tal como Broto é também uma aldeia da província de Huesca, de modo a que pudéssemos apanhar o autocarro que nos levou ao Parque Nacional do Vale de Ordesa, ponto de partida eleito para a subida ao Monte Perdido. Outra das hipóteses teria sido não descer a Bujuarelo, mas sim fazer uma pequena incursão em França, voltando a Espanha através da Brecha de Rolando, uma impressionante gruta e fronteira natural.

É cedo, mas já há centenas de trekkers, muitas famílias, algumas com crianças, que animadamente esperam pelo único meio de transporte que nesta altura do ano – Agosto – está autorizado a chegar ao parque. Depois de meia hora na fila conseguimos, finalmente, o nosso lugar num dos autocarros que fazem este percurso, sempre de ida e volta, a cada 10 minutos e até às 22h00, hora limite para o regresso. Nós não regressaríamos – se tudo corresse bem só estaríamos de volta daí a dois dias.

Enquanto o autocarro percorria aquelas belas estradas de montanha, dei comigo a deixar-me enfeitiçar pela contagiante paisagem e pelas altas paredes com centenas de metro de altura. Algumas, talvez com uns 600 metros, captaram a minha atenção por serem o resultado da erosão do antigo glaciar. Monumental, é a palavra que me vem à cabeça!

O Vale de Ordesa, património da Unesco por inquestionável mérito próprio, é de uma beleza arrebatadora. Para mim, inigualável! É uma das mais belas paisagens de montanha onde tive o privilégio de estar. É tudo tão verde! O verde dos tapetes de erva a bordejar os rios, com flores a perder de vista; lagoas ora azul-turquesa, ora verde-esmeralda; cascatas imensas que se lançam das altas paredes rochosas; picos com 3000 metros que se vislumbram no horizonte, entre farrapos de nuvens que pincelam um céu azul profundo; aves de rapina que parecem querer alcançar o céu em voos circulares; ou pessoas que passeiam, fazem picnics e se refrescam em águas cristalinas. Tudo parece perfeito e os adjectivos são insuficientes para descrever tamanha beleza… É uma verdadeira paisagem de conto de fadas!

É um bom exemplo de um Parque Nacional que, apesar de receber um número muito substancial de visitantes, consegue obter taxas muito interessantes no que respeita ao aumento da população de várias espécies protegidas. Talvez seja um modelo onde Portugal se podesse inspirar para o desenvolvimento sustentado nos nossos parques naturais.

Chegados ao fim do trilho no Vale de Ordesa, terminou o passeio e começou o trilho de montanha, com uma subida bem acentuada até ao refúgio de Góriz. Trata-se de um percurso muito agradável, que se faz tranquilamente, sem pressas, sempre a apreciar o maravilhoso Vale de Ordesa, agora a distanciar-se aos poucos, até se esconder definitivamente atrás das montanhas.

acampamento junto ao refúgio de GórizMontamos acampamento perto do refúgio de Góriz a 2200m de altitude. Localizado na face sul do maciço do Monte Perdido, é não só uma excelente opção de pernoita – convém reservar com antecedência – para quem não quer carregar uma tenda, mas também um bem-vindo apoio logístico para quem, como nós, prefere uma dormida mais tranquila – leia-se, sem “ressonadelas” alheias. O refúgio de Góriz é ainda o ponto de partida para alcançar o cume pelo lado Sul. Para ali chegar há que percorrer o Vale de Ordesa, tal como nós fizemos ou, em alternativa, através da Brecha de Rolando, para quem vem de França. É um local de eleição para acampar, onde a envolvente, repleta de vales e cumes, nos enche a alma.

Lembro-me com prazer de estar numa agradável sonolência à porta da minha tenda, já ao fim do dia, ora semisentada, ora semideitada, a apreciar o movimento lento de um enorme rebanho que descia das montanha para um vale mais abaixo. Mal as víamos. Apenas pequenos pontinhos brancos ao longe, onde o cadenciar tranquilo dos badalos era conduzido pelo vento, num som de espanta-espíritos, que relaxava os músculos e quase embalava. Estive uma boa meia hora agarrada a esta magia, também aquecida por um maravilhoso pôr-do-sol. Eu e todos os outros que por ali acampavam, sempre com o olhar a deambular pelo horizonte e em merecida preguiça.

E a provar que em montanha tudo muda a qualquer instante, o plácido fim-de-semana terminou abruptamente. Pouco antes do sol se pôr completamente, quando estávamos a terminar o nosso saboroso jantar de liofilizados, a chuva irrompeu repentinamente em grossos pingos. Num ápice estávamos debaixo de chuva contínua, acompanhada de ameaçadores relâmpagos e trovões sonoramente próximos. Que medo! Isto de estar numa tenda muito reduzida, com uma mera colchonete de meio corpo a isolar-me do chão tem muito que se lhe diga! Claro que em caso de agravamento da tormenta tínhamos sempre a possibilidade de correr para o refúgio com as tralhas atrás, mas a perspectiva não era muito entusiasmante, sobretudo tendo um grande temporal a abater-se sobre as nossas cabeças. Apesar de particularmente sonora, a tormenta passou ao largo e em menos de uma hora. Tão depressa chegou, ainda mais rápido  para longe voou ! A imprevisibilidade da montanha a funcionar…

E depois da tempestade, a bonança. Traduzida em milhares de estrelas que foram despontando no céu. Que sorte! Afinal tínhamos conseguido “driblar” o mau tempo esperado para o dia seguinte que, a ter-se mantido, poderia ter colocado em perigo a nossa ascensão do Monte Perdido. Foram algumas horas de antecipação, facto que permitiu sair com céu limpo e condições perfeitas logo pela madrugada. Os ponteiros do relógio ainda não apontavam as 6h30 e já estávamos de mochila às costas, com o material necessário para a ascensão, bem como com a comida para o dia. Decidimos começar bem cedo porque o dia apresentava-se longo e as previsões meteorológicas eram meio sombrias para a parte da tarde – queríamos evitar sermos apanhados por mau tempo na ascensão ou descida do Monte Perdido.

O maior desafio do percurso foi a passagem da “La Escupidera”, uma pendente de cascalheira, talvez com uns 300 metros e 45 graus… Em certa medida acabámos por ter sorte, pois não havia gelo, o que acabou por dispensar a utilização de crampons. Em qualquer dos casos, há a sublinhar o facto de se tratar de uma subida “agressiva” e que requer um bom trabalho de pés e muito cuidado! Encontramos mais algumas pessoas na pendente – talvez uma meia dúzia –, onde destacaria dois corredores de ultra trail que, como se nada fosse, chegaram facilmente ao cume antes de qualquer outra pessoa. Viemos depois a saber que fizeram o percurso desde a entrada do parque em apenas 3h40. Uma coisa do outro mundo! É que fazê-lo a correr, à velocidade que os vimos passar, requer uma grande mestria e capacidades físicas impressionantes.