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    Categories: Crónicas de Viagem

A pausa do Transiberiano

Perder um comboio nada tem de transcendente se estivermos num ramal familiar (por e.g. a linha do Estoril) de bom astral (por e.g. na Andrómeda de Andrade), com um livro de bolso (por e.g. do poeta Eugénio) ou na companhia certa (por e.g. a madame Eva). Naquela tarde do Verão russo de 5º tinha apenas a meu favor a madame Eva. Estava por essa altura em Ulan-Ude, a caminho da China, na rota do transiberiano que em condições normais me levaria a Pequim cinco dias mais tarde, depois do Gobi e da Grande Muralha. Por instantes, Pequim pareceu-me um lugar de outra galáxia e todos os russos do apeadeiro uma horda de ursos ameaçadores. Entre o pânico e a fantasia depressa me imaginei um Miguel Strogoff das estepes, apeado e sem a posta do czar ou um carrego de rublos. Um cabide humano prestes a tombar nas inóspitas neves (a neve chegaria dentro de dois meses, o tempo de chegar a pé à próxima cidade) de olhos vazados e alma trespassada – pelo menos assim me quis imaginar, antecipando um final à Dostoievsky.

Para desanuviar do insólito valiam-me a bela Eva Houssman, uma fotógrafa dinamarquesa de pernas venezianas e voz de Greta Garbo, e as aulas de russo da faculdade do camarada Micha, então o tradutor oficial do Benfica. Entre um spasiba (obrigado) e um pajalsta (se faz favor), um gdie (onde fica) e um miniazavut Salazar (o meu nome é Salazar, para impor o respeito) – e outros gatafunhos atirados ao ar – a chefe de estacão, uma matrioskapestanuda e diligente, lá conseguiu entender o nosso problema. Depois de um convívio fluente e ululante sobre a nova economia russa (“money, money” era a única preocupação da matrioska) e de me chamar um par de vezes “pirata das Caraíbas” com gargalhadas de molares dourados, saímos da estação a toque de caixa escoltados por uma espécie de guarda pretoriana, isto é, três bagageiros do tamanho de armários. Na rua, uma avenida de seis faixas numa cidade de mil almas, decorria um comício de velhos Ladas e foi a bordo de um turbo-diesel carburado a gás que fizemos 300 quilómetros de estepe e de taiga. O preço da corrida era de 250 US mas as únicas notas da minha samarra e do soutien de Eva perfaziam 20 euros. É pegar ou largar ou “a prendre ou a laisser”, disse Eva com um esplêndido sotaque parisiense que surtiu o melhor dos efeitos e depressa arqueou os bigodes do taxista ao tejadilho do Lada. Na verdade corríamos o risco de ser incorporados nos caminhos-de-ferro ou ir bater o dente para as pedreiras da Sibéria, ou na pior das hipóteses sermos vendidos como carne tenra para os canhões chechenos. O vestido de chifon e as belas carnes de Eva tremeram. Entre o Lada do taxista e uma lagarta do exército rebelde viesse o diabo e escolhesse. “Pelo menos a vista é diferente do vagon, mais contemplativa”, observou Eva com o seu humor ferino.

Caminho-de-ferro transiberiano.
© Agostinho Mendes
Deserto de Gobi desde a janela de uma carrinha 4×4.
© Agostinho Mendes

A baça Ulan-Ude ficou para trás e entrámos nas lonjuras da estepe mortificados como duas salamandras anabióticas. Eva disfarçava a incógnita da viagem, a hipótese de tornar-se mascote do regimento de artilharia checheno trauteando árias de Callas. Michalkov havia de ter gostado daquele travelling: um fedor a sovacos e cebolas cruas e uns alegro vivaces de Mozart cantados por uma dinamarquesa polida. Salazar, o andarilho poliglota, mantinha-se então dentro da gola a pensar com um certo fatalismo e uma certa cólera bíblica em emboscadas e canibais, no alazão de Strogoff e nas goelas do camarada Popov que lhe dera a hora errada de regresso ao comboio. Na retaguarda do Lada, Eva traçava a perna sobre os bancos felpudos e nas pausas das árias recompunha o blush e o rímel. “Há que estar sempre à altura das ocasiões”, dizia-me, talvez para me desviar de pensamentos nefastos. Eu olhava a beleza da paisagem, uma planície infinita de feno, girassóis e cavalos selvagens. Contei uma hora sem nada além de pastagens amarelas, nenhuma tabuleta, chaminé ou vivalma. O taxista cabeceava e volta e meia deixava o carro sair para a berma e nesse instante todos dávamos um pequeno grito.
Eva cantava então efusivamente um verso desconhecido em dinamarquês de Houmlebbek ou talvez mandarim para despertar o taxista. Quando os decibéis subiam, os bigodes do taxista subiam com eles e ficavam na justa medida do espelho retrovisor, um daqueles espelhos de aumento que permitem contemplar tudo o que se passa à retaguarda. Às vezes, quando a ideia de morte ou de inanição me largavam, deixava escorregar a mão para o chiffon de Eva. Fi-lo um par de vezes com a conivência do taxista que devia querer festa para compensar a falta de rublos. Quando anoiteceu, tentei um diálogo, sobre a anunciada transferência de Maniche para um clube de Espanha que nem eu próprio sabia ao certo. “Maniche, Espania, kakvazavut, pajalsta, sbasiba…”, e logo desisti demovido pela minha própria consternação. Disse então a Eva que se chegasse inteiro a Pequim tentaria um negócio de venda de skates ou de selins de bicicleta como o Pacheco de La Ceiba. Perdido por cem, perdido por mil.

Texto originalmente publicado em http://www.tiagosalazar.com