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    Categories: Estórias da minha cidade

(Re)visitar o Bairro Alto

Ao contrário do que muitos profetizaram por um número incontável de anos, o Bairro Alto, em Lisboa, continua vivo e recomenda-se.

Estarão a fazer cerca de 20 anos que trabalhei numa associação de cariz social no bairro; que frequentei vezes sem conta o “Frágil”, os “Três Pastorinhos” e mais tarde o “Capitan Kirk”; que no fundo passei boa parte do meu tempo neste bairro, de carácter tão típico e histórico.

Mas eis que surgem novas oportunidades, desafios e até novos destinos para copos. O interesse pelo bairro esmorece-se. Foi mais de uma década sem voltar ao outrora chamado “Vila Nova dos Andrades” e só mais recentemente, ao participar numa ou outra incursão nocturna, decidi que estava na hora de voltar e ver o que mudou. Este é pois o momento de redescobrir o Bairro Alto…

Início a revisita subindo a Rua da Atalaia, que continua exemplarmente revestida com o tradicional basalto negro. Em diversos locais, corre água envolta numa espuma muito branca, que resulta das limpezas matinais de bares e restaurantes: a estrada parece ter sido lavada pela cerveja que na noite anterior, abundantemente, terá escorrido pelas gargantas sôfregas de milhares de pessoas. Aliás, os resquícios de uma noite animada – porventura de excessos – são perfeitamente visíveis através dos copos e garrafas que abundam pelos caixotes, ombreiras de janelas, soleiras de portas, ou nos mais variados recantos.

Outra coisa que salta ao olhar é a quase ausência de tráfego automóvel: é que, à excepção de uma ou outra via, o trânsito de outrora foi retirado das ruas pelo Município. O bairro tornou-se agora num imenso espaço pedestre, onde apenas os moradores podem fazer circular os seus veículos.

A afamada Rua do Norte, está repleta de lojas de arte, étnicas, moda, tatuagens, música e, imagine-se, até os Cupcakes – aqueles bolos cheios de creme celebrizados em “O Sexo e a Cidade” – já aqui chegaram.

Já uma das suas “irmãs gémeas”, a Rua da Rosa, recebeu cabeleireiros que fazem cortes extravagantes ou lojas de acessórios graffiti, que sadiamente ombreiam com as mercearias e drogarias que a memória não soube apagar. Trata-se de um comércio que, embora não sendo destinado a massas, é no entanto direccionado a nichos específicos e onde a originalidade e novas tendências são olhadas de uma forma inovadora e moderna. É em parte por esta vertente vanguardista, que se tem vindo a observar um novo movimento pendular de gentes, que visitam o bairro sem o propósito exclusivo de copos ou comezainas.

Não faz muito tempo, li na imprensa que o bairro é detentor de mais de duas centenas de restaurantes, tascos, bares e afins. Na altura achei excessivo, mas hoje reconheço verdade na afirmação. Efectivamente, é sem grande dificuldade que se constata que porta sim, porta sim, é lugar para grandes repastos, simples petiscos ou para horas de copos e mais copos. Os estilos contrastam-se e a abundância gastronómica percorre os antípodas do planeta. Para os ávidos em experiências gastronómicas, e para quem procura sabores fortes e exóticos, pode encontrar no bairro, além da tradicional cozinha portuguesa, verdadeiros e suculentos bifes argentinos, pizzas e pastas, dar um salto à Índia e experimentar um frango tandoori, ou passar pelo norte de África e comer um verdadeiro couscous marroquino.

Graffiti, Rua da Atalaia.
Entrada para um bloco de apartamentos do convento dos inglesinhos.

Com o estômago a dar os primeiros sinais, apercebo-me que embora o potencial gastronómico seja grande, quase tudo se encontra fechado. Decido interpelar um transeunte na esperança de mais facilmente encontrar um dos tascos bairristas. Talvez por não ter percebido a minha pergunta, responde: “A esta hora está tudo fechado! Como a maior parte dos restaurantes só abre à noite, o melhor é ir ali para os lados do Chiado”. Ao que returco: “Mas se a senhora quisesse comer agora, onde iria?”. “Eu? Ia ali aos irmãos…”. “Muito bem! É aí mesmo que quero ir!”.

Por alguns instantes, sigo a senhora e dou de caras com um local esguio, de cheiro hortelã-pimenta, paredes ocre e de aspecto gorduroso. Despido de qualquer preconceito, sigo o ímpeto e avanço para o seu interior: sendo quase abalroado por duas crianças que saem disparadas e parecem jogar à “apanhada”. Já no interior, avisto uma empregada, que completamente indiferente à minha presença, lava tranquilamente os copos que escorrem directamente em prateleiras de vidro pregadas à parede.

Sinto o meu rosto rasgar um ligeiro sorriso! Aproximo-me do balcão de vidro baço, rachado longitudinalmente e volto a sorrir. Peço um rissol, uma sandes de presunto e uma imperial.

Continuo a observar aquele local – para muitos asqueroso – e facilmente consigo estabelecer pontes com muitos dos locais por onde já passei nestas viagens de andarilho. Durante alguns instantes, o meu pensamento esvoaça – aliás como alguns dos pombos que por ali vão entrando e saindo – até não sei bem onde. Mas, rapidamente regressa com o ruído libertado pelo duelo, quase titânico, entre um dos funcionários e uma perna de presunto que apareceu do nada: afinal, era só o cortar de algumas fatias para a sandes, mas com um grande posicionamento estratégico e de arma sempre em riste. Enquanto mordisco o rissol, que continua a escorrer um óleo meio enegrecido, aproveito para me intrometer na conversa da dupla que me olha com desconfiança.

O senhor Joaquim, morador no bairro há 45 anos, revela-se suficientemente efusivo para manter uma conversa extremamente agradável durante quase uma hora. Além de sublinhar, por mais que uma vez, que não gostava do bairro e só cá veio parar por um mero acaso – as muitas vindas às “putas“ de então –, hoje reconhece ser a sua casa. Considera que o bairro já não é a mesma coisa e que tem medo de sair à noite, pois a “vadiagem” é muita. Queixa-se ainda do tráfico de droga, das torrentes nocturnas de gente, ou do barulho que não o deixa dormir.

Já o senhor Santos, vindo de Celorico da Beira, também morador no bairro à perto de cinco décadas, congratula-se com as árvores de fruto e o jardim que tem no pátio interior seu prédio. Lamenta-se, no entanto, do karaoke existente no R/C, do mijo nas esquinas, dos graffitis que não poupam nada, ou da crescente procura de espaços para arrendar, o que está a fazer subir de forma galopante as rendas das casas. Neste momento há uma procura quase incessante por parte de jovens, da classe média e até de alguns burgueses. Os espaços vão desde simples quartos, apartamentos remodelados, ou complexos luxuosos que podem custar vários milhões de euros.

Transeuntes, Rua da Barroca.

A opinião dos dois é, no entanto, comum em dois aspectos: “neste momento já ninguém pede salsa, ou o que quer que seja, ao vizinho…”; “o bairro vai tornar-se num lugar de ricos e de romeiros para a folia nocturna.”.

Deixo o tasco e a dupla com os seus penaltis de ginja. Continuo sem qualquer destino e deixo-me perder nas ruas e ruelas. Procuro no fundo embrenhar-me no lado quase místico do bairro: é quase como mergulhar e não querer voltar à superfície; é o desejo em manter-me numa espécie de transe emocional e deixar-me guiar pelas crianças que vejo brincarem na rua, pelos estendais de cores garridas, pelos idosos que falam de janela para janela, pelo fado que ecoa não sei bem de onde, ou pela estridente música metaleira que saí de um 1º andar.

Do ponto de vista arquitectónico, o bairro continua com a traça que sempre o caracterizou ao longo das última décadas. Existem algumas dezenas de edifícios excessivamente degradados, ou mesmo em ruína, mas muitos outros sensatamente recuperados, ou a caminho de o serem.

Há no entanto um ou outro excesso que, a multiplicar-se, pode ferir de morte a paisagem e identidade do bairro. Como seria de esperar, também aqui se fazem sentir a pressão e especulação imobiliária, pelo que urge a imposição de regras que protejam um património rico e representativo de umas das faces importantes do bairro.

É pois preciso saber o que vai ser feito do Palácio do Visconde do Rio Seco, que o Município pretende alienar para um hotel de charme; que tipo de hotel vai nascer naquele imenso quarteirão, onde já estiveram instalados os armazéns de S. Roque; e qual o projecto que se quer para o reaproveitamento das áreas subocupadas, da reabilitação de espaços devolutos e para a ocupação do solo. No fundo, é preciso saber qual a matriz de desenvolvimento urbano que se quer para o bairro: é que não se trata exclusivamente da recuperação do edificado, mas sobretudo daquilo que é parte da génese e da alma do próprio bairro.

O Bairro Alto das inúmeras tipografias e afamados jornais, das tascas de marinheiros e “casas de meninas” ou exclusivamente do comércio tradicional, acabou e ponto final. O Bairro de hoje é um espaço de tertúlia e de boémia; de cultura contemporânea e de tradições antigas; de arte urbana e espaços Kitsch; de lojas vanguardistas e mercearias tradicionais; de ruínas geminadas com verdadeiros condomínios de luxo; de nobilitação urbana.

Há quem diga que o bairro está moribundo ou a morrer aos bocados. Lamento, mas não concordo! O bairro de hoje está afinal cheio de velhos, novos, estrangeiros e das mais variadas tribos urbanas. Pergunto: Será estemelting pot” de diversidade suficiente para catalisar uma nova e verdadeira identidade do bairro? Estou convencido que sim. Aquela que já foi chamada a “sétima colina”, pulsa nesta mescla de gentes; o gosto lacónico e universal por esta coisa única que é afinal ser parte integrante do próprio bairro.

O Bairro Alto de hoje está na moda, e ao contrário do que muitos profetizaram, continua vivo e recomenda-se.

Andar degradado, Travessa da Queimada.