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    Categories: Estórias da minha cidade

O velho Muchaxo

Sem grandes luxos, o parque de campismo da Orbitur era a minha residência durante esses longos períodos. Estamos a falar da segunda metade dos anos 70, quando a região de Cascais e a Linha do Estoril exalavam um último suspiro, o requiem pelos tempos gloriosos que se seguiram à II Guerra Mundial, quando a fina flor da sociedade europeia não desdenhava uma incursão aquela costa que oferecia uma alternativa credível às outras paragens nobres do velho continente. Talvez o afluxo de famílias reais que se refugiaram por ali nos anos da guerra tenham contribuido para a divulgação dos encantos da região. A verdade é que entre os anos 50 e 70 o ar que se respirava em Cascais e zona envolvente era muito rico em “glamour”. E isso, quando ainda gaiato comecei a trilhar aquelas paragens, sentia-se.

Um dos símbolos desses tempos de ouro era a Estalagem Muchaxo, alvo dos olhares sonhadores do jovem de Lisboa que sentia o charme dos clientes, e que, em alturas especiais, desbaratava as moedas poupadas ao longo de muitos dias numa entrada para a piscina do estabelecimento.

A noite do Guincho…

Os anos passaram-se, o Guincho saiu da minha vida, mantendo umas reentradas pontuais: durante duas décadas, fui ao bar-café do Muchaxo umas quantas vezes, ora na companhia do meu pai, que viveu em Cascais na fase final da sua vida, ora para impressionar garotas, com o ambiente encantador que caracterizava a sala.

Foi contudo há um par de anos que o prolongado romance entre mim e a estalagem Muchaxo se consumou. A coisa passou então da fase da piscina e do bar-café, para se oficializar em definitivo: tornei-me hóspede! E nem sei bem como… recordo-me que procurava um local especial para passar o meu aniversário, e o Guincho, com a sua beleza selvagem e a sua centralidade recatada representava uma óptima proposta. Depois, passou-me defronte dos olhos o Muchaxo, e soube que tinha encontrado o cantinho para aqueles dois ou três dias de Inverno.

Pernoitar na estalagem, antes inalcancável, e agora prestes a abrir-se para mim, foi um passo e pêras. Penetrar nas áreas reservadas aos hóspedes revelou-me um outro Muchaxo. O páteo interior, espaço vital da antiga fortaleza do século XVII sobre a qual se edificou o hotel nos finais dos anos 50; a sala de refeições, ampla, com uma vista única sobre o areal da praia do Guincho e o mar revolto de Dezembro; os diversos bares, certamente fervilhantes de vida há quarenta anos, e actualmente desertos; e, claro, os aposentos, completamente fora de moda, a necessitar como de pão para a boca de umas obras que nunca chegarão, com as suas portadas que, ao abrirem-se, fazem entrar o oceano pelo nosso quarto adentro, ar impregnado de humidade, quase espuma voadora, que se levanta das águas, o ribombar constante das vagas que fustigam os rochedos ali em redor.

Podia ser em Luanda…

A partir do Muchaxo chega-se a Cascais num instante. Mas parece que algo está mal, é como um túnel de tempo. Que nos agarra e nos manda de um lado para o outro de umas quantas décadas. Saímos de um mui digno estabelecimento hoteleiro dos anos 60, mas a Cascais onde chegamos dez minutos depois é uma metrópole do século XXI. Não se vêem os Alfa-Romeus conduzidos por “playboys” ociosos a caminho do Casino do Estoril… são antes Smarts, Seats Ibiza, Renaults Clios… carros de uma classe média que mal existia quando o Muchaxo brilhava e se engalanava para receber príncipes e rainhas, presidentes e marechais, enfim, a nata da nossa sociedade e da dos outros. A testemunhá-lo, estão lá os recortes de imprensa, na galeria de entrada da estalagem. E não são poucos.

 O perfume de um Império ido sente-se de intensamente nos cantos da estalagem. É uma forma de vida que se encontra ali presente, nos móveis, nos conceitos de decoração, na disposição das salas. É uma questão de se fixar o que nos envolve, fechar-se os olhos por um segundo, e sentirmo-nos chegar a um café-restaurante da bela Luanda, com as imperiais a correr, o marisco, muito rosado, a assentar nas suas travessas prateados sobre as mesas dos clientes, homens de bigode bem definido, uns de calções, quase todos de camisa de manga curta, e as suas mulheres e namoradas, de saia travada, blusa de seda. Mais ou menos o mesmo que se veria nos Verões do Muchaxo de então.

À noitinha, quando o mundo em redor se movimenta para regressar a casa, escuta-se o piano, e observam-se os clientes. Duas raparigas ultimam aquele trabalho para a universidade, com os computadores em cima da mesa e a papelada espalhada pelo tampo; não muito longe um homem de fato e gravata acaba a sua bebida, certamente com a mente perdida nas fasquias crueis dos objectivos de vendas que tentará atingir no dia seguinte; acolá, um casal de idosos deleita-se com a música, e, vindo das sombras, o velho Muchaxo apresenta-se para dois dedos de conversa. O próprio, o fundador, que vagueia pelo seu território quase milenar, olhar perdido pelo tempo que já foi.

Incapazes de estabelecer as relações temporais que se exigem para compreender a magia do local, os hóspedes estrangeiros vão deixando comentários pouco abonatórios nos “sites” de reservas e de turismo. Que o hotel está nas últimas, que os quartos são antiquados, que tudo está degradado e a necessitar de modernização. Deixai-os falar, ò Muchaxo… eles não sabem o que tu e eu sabemos, eles não conhecem este dom maravilhoso que nos leva pelos tempos, até um passado que foi nosso, tu, já homem feito, empresário de um sucesso que tiveste e te abandonou. Eu, rapazinho imberbe, cheio de sonhos que foram chegando, uns transformando-se em pó, outros consolidando-se e ficando. Nós, teremos sempre aquele Guincho, aquela Cascais, aquele Estoril.

À noitinha, a música do piano baila por estas paragens
Sala de pequeno-almoço: ao longe, o cabo da Roca, por detrás do extenso areal do Guincho
Um cantinho mais intimista, reservado aos hóspedes
O meu quarto, localizado na ala antiga, mais barata e muito mais interessante