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As falucas e a magia do Rio Nilo

Nos dias que correm, os muitos cruzeiros que deslizam sobre as águas mansas do Rio Nilo, na maior parte das vezes carregados de turistas, não são mais do que gigantes de aço descaracterizados, afamados por permitirem algum bem-estar aos menos sedentos por aventuras em terras de faraós. Os conhecidos cruzeiros do Nilo são reconhecidamente um dos ex-libris nas viagens ao Egipto, bem como um dos principais motores da promoção da indústria turística do país. São ainda frequentemente utilizados para a produção de filmes ou como cenário da acção de várias obras literárias, como é caso de A Morte no Nilo, escrito pela Agatha Christie. Mas será que o conforto proporcionado pelo ar condicionado, a previsibilidade das actividades ou os horários marcados para quase tudo, valem pela falta de genuinidade na experiência e pela ausência de contacto com a realidade local? Não lhe parece muito mais sugestivo navegar ao sabor do vento e da corrente, sem que lhe imponham qualquer compromisso? E que tal ser promovido a capitão de uma pequena embarcação, conhecer aldeias que nunca ouviu falar, experimentar a realidade do país e ser surpreendido vezes sem conta? Tudo isto está ao seu alcance, bastando apenas que troque o “Golias de ferro” por um “David de madeira” chamado faluca.

Construídas em madeira, as falucas são pequenas embarcações de aparente fragilidade, sem qualquer motorização e com um grande mastro frontal, de onde é libertada uma enorme vela quase triangular. Ideais para a navegação de cabotagem, são barcos essencialmente utilizados em águas pouco agitadas, com particular destaque para o Mar Vermelho e o Rio Nilo. As evidências arqueológicas, que o tempo preservou até aos nossos dias, apontam para a construção de barcos de madeira no Egipto desde o Reino Antigo, algures em torno do ano 3200 aC. Ao longo dos séculos, e quase sempre com a barca funerária como ponto de partida, os egípcios conseguiram desenvolver várias técnicas de construção naval que se foram aprimorando até resultarem na construção da faluca: embarcação que ao longo dos milénios tem sido uma fonte importante de sustento e desenvolvimento da nação egípcia. Ao longo de milénios, a faluca marcou a paisagem natural do Rio Nilo e foi responsável pelo transporte de pessoas, exércitos, tesouros, alimentos e muitos dos materiais utilizados na construção das mais relevantes obras-primas da arquitectura e arte do país.

O Nilo, ao qual os antigos egípcios chamavam itéru (grande rio) é o curso de água mais extenso do mundo e entra em território egípcio pouco a sul dos majestosos templos de Abu Simbel, através do lago Nasser, que se estende para lá da fronteira sudanesa e foi criado artificialmente pela grande barragem de Assuão. Os 1.440 quilómetros que atravessam o coração do país até desaguarem num grande delta, junto ao Mar Mediterrâneo, fizeram desta fértil faixa de terra o principal catalisador do crescimento da antiga civilização do Egipto. Junto ao rio todas as grandes cidades nasceram, cresceram e se desenvolveram. A faluca, que atravessou os séculos sobre esta espécie de auto-estrada natural, desempenhou, assim, um papel de grande relevância na ligação destas cidades e dos principais centros decisórios e económicos do país: com grande facilidade se alcançava Alexandria, Mênfis, Guiza ou Cairo, no Baixo Egipto, e Abidos, Tebas, Edfu ou Assuão, no Alto Egipto. Contudo, a evolução dos tempos e a massificação da construção de pontes sobre esta via de comunicação, têm contribuído para que a realidade actual seja muito diferente. É que se por um lado estas estruturas têm melhorado as acessibilidades aos grandes centros demográficos do país, por outro, têm limitado a navegabilidade destas embarcações milenares a pequenos troços do Nilo, em grande parte devido à incompatibilidade resultante da altura das pontes e dos seus grandes mastros.

Uma viagem de faluca, que pode habitualmente acomodar até 10 pessoas, tende a ser uma viagem privada e personalizada à medida do gosto e vontade de cada um. Dependendo do tempo que se disponha para navegar, existem opções que permitem valorizar a experiência com diferentes intensidades: passeios de uma hora, com saídas frequentes a partir dos muitos cais existentes nas cidades; circuitos de meio-dia organizados pelos hotéis, que incluem almoço a bordo; ou a total imersão na essência do Nilo, que se pode estender por vários dias de navegação. A escolha depende apenas do interesse e espirito aventureiro de cada um. No verão, além da elevada temperatura, a frequente ausência de vento pode dificultar a progressão de embarcações que dependem exclusivamente da força eólica, por isso, é recomendável que as viagens se realizem sempre no sentido montante – jusante, de modo que se possa utilizar a corrente, quando assim for necessário. Na primavera, embora a temperatura ambiente seja moderada, há sempre a possibilidade em sofrer as consequências de uma tempestade Khamsin – ventos quentes e de grande intensidade, normalmente de curta duração, que transportam grande quantidade de areia e poeiras –, que além de dificultar a visibilidade, pode mesmo forçar a interrupção da navegação. Em bom rigor, a duração e o período do ano em que a viagem se deverá realizar têm os seus prós e contras, que deverão ser devidamente avaliados e ponderados.

Os núbios pintam frequente muros e as fachadas das suas casas
Tal como no resto do país, também os núbios são grandes apreciadores de chá


E se a escolha acertada para uma viagem deste tipo depende da vontade de cada um, o percurso actualmente efectuado entre as cidades de Assuão e Luxor, com uma duração compreendida entre quatro e cinco dias, é uma prova que lhe garante experimentar a realidade e vivências locais.

Sendo esta a sua opção, junto ao porto da cidade de Assuão, quase em frente da ilha elefantina, encontram-se atracadas falucas para quase todos os gostos: grandes, pequenas, com cores garridas, nomes curiosos ou inscrições surpreendentes. Assim, e procurando evitar os muitos intermediários que habitualmente esperam ganhar uma boa comissão à conta dos estrangeiros, a melhor solução é abordar directamente os marinheiros que se encontram junto ao cais, de forma a estabelecer as condições da viagem e acordar o preço a pagar. O itinerário pode ser definido antecipadamente por si ou em conjunto com o capitão, mas não se esqueça que você é que manda, por isso, pare onde quiser e veja os locais durante o tempo que desejar. Habitualmente a partida é marcada para o dia seguinte, mas há sempre a possibilidade em tudo estar preparado num bom par de horas. Não se esqueça também de incluir no preço os alimentos a confecionar a bordo e a água potável, pois evitará surpresas e demoras de última hora. A água engarrafada é habitualmente por conta dos passageiros. Igualmente importante é aferir qual o número de tripulantes afectos à viagem que deseja empreender. Habitualmente é composta por um mínimo de duas pessoas: o capitão que assegura a navegação e um ajudante para confecionar as refeições, fazer limpezas e manobrar a vela.

Apesar de algumas embarcações demonstrarem aparentes diferenças, muito pouco irá introduzir alterações significativas ao seu comportamento em termos de navegabilidade. Na grande maioria dos casos, sobre os bancos rebaixados de madeira, instalados estrategicamente junto à borda do casco, são colocadas almofadas que elevam ligeiramente a fasquia do conforto e introduzem alguma cor sobre o esmalte branco que cobre a madeira envelhecida. No centro está instalada uma mesa que é o centro de vida a bordo, ocupa parte significativa da superfície da faluca e serve virtualmente para tudo: descontraídas conversas, deliciosas refeições, períodos de introspecção e até de aconchego para o sono profundo da noite. Há também um enorme toldo, esticado por quatro varões metálicos, que cobre a mesa central e protege dos calorosos raios solares do verão. A regra de ouro é procurar uma faluca em bom estado de conservação e que lhe demonstre confiança. E caso a embarcação da sua eleição não seja pertença do capitão escolhido, não se preocupe porque ele irá negociar a sua utilização junto do legitimo proprietário.

Já instalado a bordo, deixando para trás o frenético movimento naval junto à cidade, é com grande rapidez que a calma das águas mansas se apodera da faluca. A magia da paisagem destolda a imaginação de cada um, tal é a beleza da exuberante vegetação nas margens e a magia das areias doces do deserto do Sara. Ziguezagueando entre as margens onde cresce a planta do papiro, a progressão faz-se lentamente, conforme a vontade do vento e da corrente. As hortas, os campos repletos da cana-de-açúcar e os grandes palmeirais, acompanham a suave imersão nos hábitos e vida do povo núbio que, ora puxa rudimentares arados de madeira, ora lança redes em busca das inúmeras espécies que habitam o ecossistema do rio. As crianças, que correm junto às margens na perseguição dos íbis e mergulhões, aproximam-se sorridentes e lançam os seus pregões na expectativa que lhes seja oferecida mais uma caneta. Contudo, e ao contrário do que habitualmente acontece nas grandes cidades, a recusa é aceite com naturalidade, restando o sorriso luminoso estampado nas faces que se perfilam para a fotografia e são o deleite dos fotógrafos.

Pontualmente, a movimentação ascendente e descendente dos cruzeiros, cheiros de turistas que acenam impulsivamente, interrompe o silêncio e a tranquilidade que se vive a bordo. O risco de abalroamento é muitas vezes olhado como uma realidade inevitável, mas a mestria do capitão encontra sempre o rumo que contrasta com a tragedia anunciada. Fica o rouco e prolongado apito do colosso de ferro, bem como a força da sua passagem, que eleva subitamente a ondulação e fá-la assemelhar-se a vagas de alto mar. As águas, muito convidativas a banhos, dizem-se cheias de bactérias e micro-organismos perigosos para a saúde, sobretudo para quem não está habituado ao seu contacto. Todavia, desde que não ingerida, parece não haver um número muito elevado de relatos onde esta água, portadora de vida e fertilidade, seja responsável por graves problemas de saúde em estrangeiros. Os crocodilos, imortalizados pelos antigos egípcios sob a forma do deus Sobek, há muito que também não se banham por aqui, pois foram capturados e levados para lá da grande barragem de Assuão – os interessados em avistar este curioso animal, actualmente só o podem fazer no lago Nasser.

As areias doces do deserto do Sara são parte integrante da paisagem
O pôr-do-sol implicar fundear, mas antecede extraordinárias noitadas de conversa


Em total contraste com o caos indescritível de algumas cidades, a serenidade imperturbável dos dias no Nilo é apenas interrompida pela débil brisa ou pelo som da água rasgada pela quilha da embarcação. As refeições, transformadas em verdadeiras aulas de cozinha do Médio Oriente, alternam-se entre palmas, sorrisos e músicas entoadas, muitas vezes numa espécie de pranto sofrível, pelos tripulantes que procuram surpreender com a versatilidade que tanto caracteriza e orgulha o povo núbio. Nas noites, a luz de lampiões a petróleo e do reflexo da lua, despertam os sentidos e o calor da alma. Há qualquer coisa de mágico e místico que nos rodeia, quem sabe numa evocação a Hórus – deus dos céus. E é sobre este encantamento desconcertante, de olhos voltados para as estrelas que pulsam no negro do céu, que se prepara o sono sobre a mesa central, entretanto forrada de finos colchões e almofadas.

De visita obrigatória, as aldeias núbias que proliferam junto ao curso do rio, são a forma mais genuína de contactar o povo e constatar in loco o seu modo de vida. Neste sentido, há uma forte probabilidade em que o capitão da embarcação seja natural de uma destas aldeias, o que significará ser ele próprio a mostrar suas origens. Se assim não for, há sempre os familiares e amigos que estão prontos a fazer da sua visita uma experiência etnologicamente rica e que perdure na memória. No espirito dos aldeões núbios, há sobretudo uma enorme vontade em descobrir a motivação da nossa visita, uma incansável hospitalidade e um grande desejo em que sejamos conhecedores dos seus costumes, problemas, sonhos e aspirações. A inevitabilidade da surpresa é outro dos atributos que abundam nestas aldeias: convite para um chá ou refeição, pedidos para que encontremos senhoras estrangeiras que se predisponham a casar com um cidadão local, ou participações como convidados de honra em casamentos tradicionais, são apenas alguns exemplos do que este tipo de experiência pode reservar.

Durante os cinco dias de percurso, outros dois pontos de paragem obrigatória são os templos de Kom Ombo e de Edfu. O primeiro, de origem ptolemaica e construído nas reminiscências de um templo muito mais antigo, é consagrado às divindades Hórus e Sobek, o que faz dele um caso especial, pois é o único templo encontrado no Egipto que é simultaneamente dedicado a dois deuses. Dispõe de duas entradas, resultantes da simetria perfeita entre as duas naves destinadas à consagração de cada um dos deuses, e um pátio frontal com 16 colunas, onde se mantêm cenas com cores originais, nomeadamente a do imperador romano Tibério, que é exibido numa pose de adoração e a realizar oferendas a várias divindades. O segundo, também de origem ptolemaica, é um dos templos mais bem preservados e interesses do antigo Egipto, sendo consagrado exclusivamente ao deus Hórus. A sua monumentalidade faz dele o segundo maior templo do Egipto, só ultrapassado por Karnak, em Luxor. Edfu, que terá permanecido em construção por mais de 180 anos, apresenta um hipostilo, um santuário e uma fachada caracterizada pela utilização de pilões, uma novidade introduzida durante o período do Novo Império. Os inúmeros hieróglifos e inscrições representadas nos baixos-relevos são muito abundantes e representam uma fonte importante de informação sobre a escrita, a mitologia e a religião durante a época em que foi construído.

Após cerca de duzentos quilómetros de uma emocionante viagem, a despedida é feita em Luxor, cidade nas imediações da antiga Tebas e capital do reino durante o Império Novo, há cerca de 3500 anos. A cidade é um grande museu ao ar livre, com destaque para os templos de Luxor e de Karnak. De fácil acesso e não muito distante, encontra-se ainda a grande necrópole constituída pelo Vale dos Reis e Rainhas.

No final, com ou sem baksheeh, a viagem de faluca será o resultado de uma experiência pessoalmente marcante e intensa. Os momentos de introspeção, a verdade social e o conhecimento da realidade local, perdurarão na sua memória e na das gentes com quem se cruzou.