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Muito além dos garotos de Liverpool

Ao pensarmos em Liverpool a primeira coisa que nos vem a cabeça são os Beatles, sua herança musical e cultural em todo o mundo. Entretanto, a cidade pode ser e é muito mais do que os quatro garotos que mudaram a história do rock.

A localização geográfica ajuda a explicar a importância da cidade para a Inglaterra e para o mundo. Estando 350Km ao norte de Londres a cidade fica na foz do rio Mersey que corre do interior do país para o mar passando por Manchester. Estas duas cidades foram o berço da Revolução Industrial. Tal processo histórico consolidou o que conhecemos como ciência hoje em dia, impulsionou o capitalismo, assim como novas tecnologias – a principal delas a máquina a vapor. Tais avanços proporcionaram uma transformação sem precedentes no sistema de manufatura, especialmente na produção têxtil. Estes somados às revoluções burguesas e aos cercamentos no campo – institucionalização da propriedade privada – fizeram com que a população nas cidades aumentasse muito, criando uma grande oferta de mão-de-obra. Dessa forma as duas cidades – especialmente Liverpool, por sua localização próxima ao mar – foram de fundamental importância no processo da indústria moderna: 1) produção; 2) distribuição e 3) consumo.

Liverpool respira a história da indústria, do capitalismo e do mundo moderno. Não é à toa que um de seus principais pontos turísticos hoje são as “Albert Docks”, antigas docas portuárias na beira do rio e próximas ao centro da cidade, que foram transformadas em restaurantes, bares, lojas e museus. Um dos mais interessantes museus é o “International Slavery Museum”, que é um o único museu nacional, e um dos únicos do mundo, dedicado à história do tráfico transatlântico de escravos e suas consequências. São tratados temas como liberdade, identidade, direitos humanos, racismo e transformações culturais. Além disso, são apresentados dados sobre as condições de vida dos cativos durante o transporte, assim como o comércio de escravos organizados por ingleses e ocorrido na África, América e Europa. Tal modelo ficou conhecido como comércio triangular, pois os ingleses exportavam manufaturas e outros produtos, levavam escravos para a América e voltavam de lá com grandes cargas de produtos agrícolas, principalmente tabaco. Um bom passeio para o viajante são os Mersey Ferries que não só servem de transporte para o outro lado do rio, mas dão uma boa dimensão da zona portuária de Liverpool. Ao longo do trajeto é possível ver antigos armazéns de tabaco utilizados ao longo dos séculos XVIII e XIX. Com estes mesmos barcos é possível subir o rio até Manchester, passando por diversos canais e eclusas. A viagem dura aproximadamente seis horas e só ocorre em datas específicas.

Inconfundível arquitetura inglesa e as duas cores que preenchem os corações da cidade.
Policiais acompanham ocupação de manifestantes.

Como já está claro, Liverpool tem sua vida e história voltadas para o rio e para o mar. O porto é um grande marco da cidade. São diversos os estaleiros ao longo da orla, terminais de carga e também de passageiros. A Cunard Line, responsável pelos cruzeiros do Queen Mary 2, Queen Elizabeth e Queen Victoria tem sua sede na cidade e no último dia 25 de Maio, celebrando os 175 anos da companhia, os três navios estavam reunidos na cidade em um grande evento.  Na outra margem do Mersey é possível visitar um antigo U-Boat alemão que ficou no fundo do Mar do Norte por quase quatro décadas, até que foi levado para Liverpool e se transformou em um interessante museu, onde é possível ter uma boa ideia do que era a vida em um submarino durante a II Guerra Mundial e do que foram as batalhas no Atlântico.

A bela Catedral de Liverpool, é a maior da Inglaterra. Sua construção foi completada somente em 1978.
O místico Cavern Club é uma das principais atrações de Liverpool e recebe milhares de turistas o ano todo.

O centro da cidade está a duas quadras do porto e do Liverpool Waterfront, onde estão não só prédios que fizeram e fazem parte da história administrativa da cidade, mas também o recente Museum of Liverpool, o Merseyside Maritime Museum e o Tate Liverpool, outros importantes museus da cidade. O centro não tem grandes atrações e também não é muito grande, mas são diversos os calçadões recheados de lojas, shoppings, restaurantes, bares e pubs.

A poucas quadras do centro, subindo uma colina, está a Catedral de Liverpool que se trata da maior de Inglaterra e a quinta maior do mundo. Sua construção se completou somente em 1978 e hoje é um principais pontos turísticos da cidade. Sua beleza arquitetônica, bem como diversos eventos culturais e religiosos atraem visitantes o ano todo. E é no meio disto tudo que se destaca uma rua. É na Mathew Street que está o Cavern Club, bar onde os Beatles tocavam no inicio de carreira, que hoje é lugar de peregrinação de todos os fãs e não-fãs que visitam a cidade. Sem dúvida vale a visita, mas às sextas e sábados chegue cedo de preferência antes das 19h, pois não só entrará de graça como encontrará lugar para sentar. Depois disso o pub lota e é difícil até para pedir um pint de cerveja. A trilha sonora é marcada pela lembrança dos garotos de Liverpool, algo que sem dúvida chamará atenção do viajante e da galera que frequenta o bar – claro que a maior parte são turistas, mas também há um grande público britânico que frequenta o pub para as mais diferentes celebrações. O espetáculo humano do público do Cavern Club é algo também marcante, sem contar que se trata realmente de uma caverna, pois são muitos os lances de escada que se desce até chegar no bar. Aproveitando o sucesso e história dos Beatles os pubs ao redor tentam lucrar com a história da banda, como é o caso de um bar um pouco mais a frente, na mesma rua, que se orgulha de ter sido o lugar onde John Lennon e seus parceiros tomavam cerveja antes dos shows no Carven Club. Não é preciso dizer que as lojas de souvenir exploram ao máximo a história dos garotos de Liverpool.

Casas abandonadas em um bairro operário de Liverpool.

Aqui abro um parêntese para falar de algo que adoro e que sempre procuro apreciar ao máximo quando vou ao Reino Unido, os pubs. Estes bares são fantásticos, sempre com cerveja de qualidade, comida simples, mas muito boa. É um sistema de funcionamento que faz com que o cliente fique à vontade assim que entra, pois ninguém o acompanha até as mesas. É só chegar no balcão e pedir o que quiser. Você pode entrar, tomar uma cerveja e ficar lá a noite toda ouvindo música, que em 99% dos casos é de ótima qualidade, mesmo que não seja ao vivo, ou assistindo a um jogo de futebol na televisão. O público dos pubs são também um caso à parte, pois toda a vez que fui a um pub sozinho, ou mesmo acompanhado, saí de lá com boas histórias e boas conversas. Não tenho a menor dúvida de que essa é uma das melhores maneiras de se beber cerveja. Um detalhe: os pubs britânicos são ótimos, mas os Irish Pubs são imbatíveis.

Há um último aspecto que quero destacar e que também é marcante na cidade: os seus clubes de futebol. O Liverpool FC e o Everton FC são rivais históricos e dividem a cidade ao meio em vermelho e azul. Seus estádios, Anfield Road e Goodison Park respectivamente, estão separados por pouco mais de um quilômetro e pelo Stanley Park. Em bairros simples e pobres da cidade, os clubes dividem a mesma vizinhança, mas histórias muito diferentes: nas últimas décadas o Liverpool se consolidou como uma das maiores e principais equipes da Inglaterra, já o Everton carrega uma grande tradição e o fato de ter sido um dos fundadores da Federação Inglesa de futebol, mas não traz tantas conquistas dentro de campo. Assistir a uma partida de futebol em qualquer um dos estádios é sem dúvida uma experiência inesquecível, não só pelo espetáculo dentro de campo, mas também pelo quão diferente é a torcida ou platéia de um jogo da Premier League. Para ir ao estádio do Everton assistir a uma partida tomei um ônibus no centro da cidade e andei por pouco mais de vinte minutos. Ao longo do caminho pude ver como muitas pessoas iam a pé ao jogo, outros de carro, a maioria de ônibus. No trajeto reparei como a cidade de Liverpool é hoje bastante residencial e repleta de parques, ao mesmo tempo me chamou muita atenção a quantidade de casas e imóveis abandonados.

O lendário Anfield Road, estádio do Liverpool FC.
Goodsion Park, casa do Everton FC em dia de jogo.

Ao longo de todo texto falei que Liverpool, que vive à beira do rio e do mar, mas para ver o mar é preciso ir um pouco mais além do que o centro ou do porto. Southport é então a melhor opção para tal. Para chegar na pequena cidade à beira do mar, basta pegar o trem na estação central de Liverpool com destino à cidade. São quarenta minutos de viagem passando pelo subúrbio, pequenas cidades vizinhas, campos de golfe, parques naturais e campos de aviação. Já em Southport ao sair da estação o viajante atravessa um pequeno centro urbano até chegar Marine Lake, um lago na beira da praia que concentra ao seu redor um shopping, o Princess Park e um parque diversões, mas o que chama atenção é a paisagem e o seu longo píer. Pouco mais de um quilômetro de caminhada e se chega ao fim do píer de madeira que se estende por cima da areia e do mar quando a maré está alta. A vista é bastante ampla e dá uma boa noção do que é o litoral inglês na região, assim como o britânico se diverte longe dos grandes centros urbanos e turísticos.

Píer de Southport, um refugio de tranquilidade à beira do mar a poucos minutos de Liverpool.
A maré deixa por vezes o mar bastante distante na praia de Southport. Sorvete não falta.

:: Escrito de acordo com a ortografia brasileira ::