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    Categories: Crónicas de Viagem

Ayutthaya – Cidade dos três chedis

Um cheiro nauseabundo impregnava o ar. A epidemia de varíola tinha-se alastrado mais depressa do que o previsto.

Lop Buri era uma cidade perdida. Uma cidade doente.

Nas ruas os cães representavam um perigo constante. Abandonados pelos seus donos vagueavam esfomeados, revolvendo o lixo, procurando qualquer coisa que lhes aconchegasse o estômago.

Mendigos pontilhados pelo surto, apresentavam marcas pelo corpo meio despido, bem visíveis através das roupas esfarrapadas.

Aqui e ali jaziam corpos sem vida, espalhados por todos os cantos da cidade.

A alta burguesia refugiava-se em casa, na esperança que o surto passasse. Os alimentos escasseavam, tal como a água e a medicação.

A impossibilidade de sair de casa, para evitar o contacto com os infectado e com os cães esfomeados, que não hesitavam em atacar quem lhes surgisse pela frente, dificultava a resolução de um problema, que só com a morte findava.

Decorria o ano de 1350, e Lop Buri era considerada uma das cidades mais importantes do império Khmer.

Por detrás da janela do palácio, o rei Ramathibodi, sente o seu vasto império em declínio.

Olha para os três Prangs Sam Yot que se situam à sua frente. Prang Sam Yot são consagrados como santuários hindu, construídos por artesãos locais de arte e arquitectura Khmer.

Ramathibodi, mandou preparar os cavalos e a charrete, para partir o mais rapidamente possível para Ayutthaya.

Hoje Ayutthaya ainda mantém os traços que tinha, quando foi considerada capital do reino entre 1350 e 1767.

O rei Ramathibodi acabou por falecer em 1369, tendo o seu filho mandado construir um monumento para cremar o pai.

O Wat Phra Ram, local onde o rei foi cremado, é um monumento de uma beleza inolvidável. No formato de uma maçaroca gigante denominada prang, decorada com budas a andar.

A cidade emana um calor de sufocante. Tuk-tuks regateiam os preços com os clientes, para partirem disparados numa correria incansável.

No mercado de comida, uma velhota simpática tenta vender-me um cacho de bananas. Provo uma, são pequenas mas muito doces, e estão a um preço de saldo. O regateio faz parte da sua vida quotidiana, preferem vender mais barato, mas ter o prazer de regatear. Prometo à senhora idosa, que no regresso compro as bananas, que ao sorrir bondosamente expõe a sua boca completamente desdentada. Faz-me sinal que as vais guardar de lado, mas seguramente as venderá ao primeiro cliente que aparecer.

Respira-se história por qualquer lado para onde me desloque. Dei por mim nas ruínas de Wat Phra Si Sanphet, antigo palácio real, uma obra gigantesca e de uma beleza oriental. Aqui foram construídos por Ramathibodi II, três chedis para alojar os restos mortais do seu pai e irmão, bem como imagens preciosas do Buda. Este templo é considerado o mais importante de todo o perímetro real.

No interior do palácio foi construída uma estátua do Buda, na imponência dos seus 16 metros de altura, coberta de ouro. Folhas de ouro finíssimas são vendidas pelos monges aos adoradores do Buda, ou apenas a alguém como eu que queira fazer uma simples oferenda. O cheiro incenso impregna-se no ar, enquanto as velas se vão desvanecendo em cada canto. Num ambiente tranquilo ecoam-se cânticos e orações, fazendo-me passar um estado de paz na alma.

Fundado no século XV como primeiro templo do reino, serviu de modelo ao famoso templo do Buda Esmeralda de Banguecoque.

Perto fica o Wat Yai Chai Mongkhon, onde a verdadeira atracção das romarias são o enorme Buda deitado e o enorme pagode erguido pelo rei Naresuan, após ter derrotado o rei Birmanês neste local.

Dada a sua localização estratégica, foi considerada um dos mais importantes empórios da Ásia, atraindo comerciantes, missionários e aventureiros vindos de todo o mundo.

Os Portugueses chegaram cá no século XVI, encontrando uma cidade ribeirinha de canais e magníficas frotas de barcos.

Wat Phra Si Sanphet, o antigo palácio real de Ayutthaya.
© Agostinho Mendes

Foram uma ajuda importante no combate aos Birmaneses, uma vez que trouxeram como moeda de troca, armas de fogo e conselheiros militares.

A cidade encontra-se situada na confluência de três rios, o Chao Phraya, o Pa Sak e o Lopburi, tendo sido recentemente considerada Património Mundial da Unesco.

Ayutthaya é história, bem visível através das ruínas que brotam do chão como raízes. O que não se consegue ver, por estar enterrado ou ter sido destruído no saque efectuado pelos Birmaneses em 1767, consegue-se imaginar pela força que a história emana, por debaixo dos nossos pés.

O ar continua irrespirável, dado o calor que se faz sentir, mas evidenciando um aroma agradável, talvez vindo da vegetação intensa que me rodeia, ou das frutas que são vendidas a poucos metros do local onde me encontro.

Crianças brincam umas com as outras, jogando jogos cujas regras só eles conhecem.

De ilha em ilha, de ponte em ponte, aprecio tão vasto império de outrora. Salto de ilha em ilha como se fosse um explorador durante a epopeia das descobertas. Deparo-me com algumas sem saída, que simplesmente me obrigam a voltar para trás.

O sol já toca na pontinha dos chedis, preparando-se para iniciar a sua descida abrupta, para voltar no dia seguinte a iluminar o parque.

Dirijo-me para a saída, envolto num ambiente misterioso e encantado.

No mesmo local de há varias horas, a senhora desdentada continua sentada, um pouco sonolenta, por detrás da sua alcofa.

Quando me avista a escassos metros dela, o seu semblante sorri tranquilo, e levanta a mão como quem vai dizer adeus.

Levanta-se sem pressa, pelo peso da idade, e ergue o enorme cacho de bananas que me esperavam dentro da alcofa.

Que paciência de chinês tinha tido a senhora, mas na Tailândia a vida é mesmo assim, calma e tranquila.

Faz-me o preço do cacho. Tencionei pagar, mas pediu-me que regateasse, justificando com o facto de estar a comprar as bananas muito caras.

Puxa daqui, puxa dali, volvidos pouco mais de dois minutos tínhamos chegado a acordo de valores, 50 baths.

Tirei do bolso uma nota de 100 baths e dei-lha. Quando se preparava para me devolver o troco acenei-lhe um adeus.

“Lah gòrn ná”, despedi-me.

Wat Lokayasutharam, a 800 metros de Wat Phra Mongkon Bophit, é o maior Buda reclinado de Ayutthaya.
© Agostinho Mendes
Ossadas do antigo cemitério português. Os portugueses foram o primeiro povo ocidental a chegar a Ayutthaya.
© Agostinho Mendes

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  • Passei um dia por ai. Foi um dia bom, à parte ter sido o mais quente de um mês pela Indochina. Agradável, na generalidade, mas o que ficou na memória acima de tudo o mais foi um momento de final de tarde relatado no meu blog, aqui: http://www.cruzamundos.com/momentos-aquele-cais-em-ayutthaya/