Na província de Huesca (Espanha), ergue-se um reino majestoso digno de uma paisagem de Tolkien. São os Mallos. O fantástico e sublime reino dos Mallos. E, à medida que penetramos nesse mundo desmesurado de torreões e ameias compactadas pela sedimentação, que receamos ver surgir a todo o momento soldados gigantescos de lança em riste combatendo dragões alados. Mas não. Só o silêncio e o chilrear da passarada perturbam a paz do local.
Os castelos imaginários de há pouco dão lugar a curiosas configurações rochosas do período terciário, em forma de charutos que crescem a caminho do céu. São colunas sedimentares que apontam os seus dedos gigantes para a extensa mancha azul onde voam abutres leonado. Os senhores dos ares procuram em terra restos de comida para as suas crias esfomeadas. Nos flancos verticais das altas paredes íngremes equilibram-se os ninhos dessas rapinas de mau agoiro enquanto as águas esverdeadas do suave rio Gállego deslizam pelo vale.

© Michael Pfeiffer ( CC BY 3.0 )
A aldeia de Riglos é o ponto de partida para a ascensão. Subimos em esforço, sob a torreira, encharcando camisas e colarinhos. O sol verga o corpo e as vontades. Os passos tornam-se penosos, lentos, pesados e o suor corroí-nos. A farta vegetação rasteira é pouco a pouco substituída por pequenos bosques de buxo. À medida que a inclinação aumenta, a respiração torna-se ofegante e o esforço exigido é ainda maior. Mas assim que atingimos as alturas dos abutres e os avistamos de asas abertas deslizar suavemente nas correntes de ar, sentimos que conseguimos. E depois lá em baixo, de novo os Mallos como que peças de barro moldadas pelas mãos de um hábil oleiro.
O estreito carreiro de terra batida continua a subir e espreguiça-se em curvas dóceis ao longo da encosta até um miradouro onde uma vista ampla abrange todo o vale verdejante. A ascensão continua com o cenário dos Pirenéus nevados em pano de fundo até chegarmos a um cemitério de árvores secas, hirtas, mortas em contorções de agonia. Troncos jazem aqui e ali. Outras, ostentam uma cabeleira de ramos desgrenhados em forma de forquilha enquanto mostram garras de rapina prontas a nos apanhar. Parecem harpias descarnadas com o esqueleto à mostra. Preparavam-se para encenar um ballet macabro mas os passos ficaram petrificados no ar, sem vida, à espera da redenção. Logo nos afastamos deste lugar danado para atravessar um bosque refrescante até chegarmos à joia da coroa. A larga abertura entre as principais colunas dos Mallos que dá acesso a toda a planície envolvente. É a vista mais estonteante. Dois paredões enormes, talhados a pique, e, no meio deles, o vazio do nada abrindo para o horizonte de um vale encantado onde apenas faltam os unicórnios. Fabuloso, épico. Parece a porta de entrada para o templo de algum gigante, ou de um mundo sobrenatural, ainda virginal, em completo estado puro. Uma colossal proeza da natureza digna de um Sansão ou de um Hércules extraordinário.

© Pablo Moratinos ( CC BY-SA 2.5 ES )
Apesar do perigo, escaladores temerários arriscam a vida, colados à parede rosa salmão. São heróis das alturas, senhores das vertigens e agarram-se com desespero e firmeza à argamassa cilíndrica atando cordagens que os prendem à vida como se fossem o seu próprio cordão umbilical. Buscam uma vitória que só a eles pertence. Nada os assusta. Procuram derrotar o invencível, vencer o impossível em busca de glória no pódio da coragem. Entretanto, lá em baixo, ouvem-se os melódicos gorgolejos do rio Gállego a caminho do mar. Atentos, os abutres acompanham o corajoso avanço desses valentes com voos circulares interessados. Têm tempo. Muito tempo. É o seu território que está a ser invadido e uma queda pode ser a recompensa pela sua longa espera. O sol começa a esmorecer e ao mesmo tempo a fraca luminosidade vai incendiando as paredes dos Mallos que ficam cor de laranja. Mas, pregados às paredes como aranhas, os escaladores continuam a tecer a sua teia de cordas e laços – escalada é decididamente uma actividade muito técnica e exigente. Preparam-se para passar a noite agarrados à encosta desafiando o abismo.
O manto negro das trevas vem cobrir tudo com a sua vasta sombra, escurecendo as almas e espalhando os segredos. É noite. Noite negra. Só algumas estrelas cintilantes insistem ainda em fazer companhia aos candeeiros da aldeia de Riglos, agora deserta. A povoação adormece assim aninhada aos Mallos, tranquilamente à espera do dia seguinte, e dos novos visitantes que também partirão espantados com a existência deste fabuloso reino cor de sangue.

© Kvardek du ( CC BY-SA 3.0 )
Gosto de artigos assim, artigos que me metem nas veias o desejo de ir ver e sentir com os meus próprios olhos o que me é dito. Parabéns.