No antigo Egito, acreditava-se que o espírito só continuava vivo se o corpo estivesse bem conservado. Hoje em dia, a cremação é o modo mais rápido e literal de se interpretar “do pó vieste e ao pó retornarás”, além de ser uma forma mais inteligente (embora polua o ar um pouco) de se aproveitar espaço, principalmente em cidades que crescem rápida e desordenadamente. Depois, o defunto ocupará apenas um espaço dentro de um vaso em cima da estante, ou algum parente pode jogar suas cinzas no mar ou nas montanhas, numa forma mais poética de se praticar o desapego. Há ainda a opção de doar o próprio corpo a alguma universidade. Assim, mesmo morta, a pessoa continua prestando algum serviço ao próximo, se doando como objeto de estudo. Mas a maioria prefere não pensar nisso e acaba tendo o mesmo destino: sete palmos debaixo da terra.

Há muito tempo a palavra necrópole era mais usada que cemitério. Do grego necro, que significa morto e polis (cidade, estado), em Buenos Aires, Argentina, o famoso Cemitério da Recoleta ficaria melhor se se chamasse Necrópole da Recoleta. Cemitério é uma palavra de origem grega que significa dormitório. O da Recoleta, localizado em bairro de mesmo nome, está mais pra uma cidade. Cada via do cemitério recebe um nome e todos os túmulos têm número. Os números não ficam no túmulo, mas num mapa localizado à entrada, onde é possível localizar o falecido a partir de seu sobrenome, usando a lógica do jogo batalha naval. Como seria para achar Evita Perón, por exemplo, que é o túmulo mais procurado? A maioria não consegue e se perde porque sempre a procuram por Perón, sobrenome de casada, mas deve-se procurar por Duarte, seu sobrenome de solteira. Ao lado do nome procurado, haverá um código de uma letra e um número. Então procura-se por Duarte, que é seu sobrenome de solteira, e se nota que está no quadrante M-5 (código fictício, apenas para exemplificar). Olhe na lateral esquerda do mapa, onde estão as letras, e na linha superior, onde estão os números. Cruze as informações e você chegará ao quadrante onde o túmulo dela está. Aí é só andar até lá.

O temor da morte e de tudo que a ela é relacionada torna uma visita a um cemitério algo inimaginável para algumas pessoas, mas pode ser uma experiência enriquecedora e até divertida, como ficar procurando por túmulos que tenham o mesmo sobrenome da sua família. A curiosidade maior é poder enxergar os caixões. No Brasil, os féretros estão sempre escondidos debaixo da terra ou atrás de paredes de mármore ou granito. Na Recoleta, vários são visíveis, através das portas de vidro ou das grades de ferro que fecham os mausoléus. Alguns túmulos são chamados de Banelco (rede de bancos argentina), porque o aspecto moderno que eles têm, mais quadrados, sem marquise, e com muito vidro, lembram um caixa eletrônico. Aproveite e visita a Igreja do Pilar, ao lado do Cemitério da Recoleta. Para o museu anexo à Igreja é preciso pagar [currencyr amount=5.00 from=brl to=eur] ou R$5,00 (reais mesmo, quase todos aceitam nossa moeda).

Exterior do túmulo de rufina
Exterior do túmulo de rufina
interior de túmulo
Interior de túmulo com vários caixões

O túmulo de Eva Duarte Perón é o único que tem flores novas 24 horas por dia, todos os dias do ano, e está em um corredor estreito, que o torna de difícil acesso, se há um grupo muito grande de turistas. Todos se amontoam para ver e fotografar. O engraçado é ver as pessoas sorrindo ao serem fotografadas ao lado da catacumba; já outros, querem parecer mais discretos e respeitosos e fazem expressões sérias com um certo ar de luto ao posarem com a ex-primeira dama, que finalmente conseguiu descansar em paz, depois da saga por que seu corpo passou até poder ter sossego no campo santo da Recoleta. Seu cadáver, que tinha sido embalsamado, foi roubado em 1955 pelos militares que tomaram o governo Perón em golpe de estado. Tal atitude de desrespeito com a falecida foi devido ao temor que o corpo da mãe dos pobres virasse um objeto de idolatria pelos seguidores de Perón. O corpo só foi recuperado mais de 20 anos depois, em 1976.

Essa e outras histórias igualmente supreendentes você escuta se fizer uma das visitas guiadas pelos cemitério. Outro caso bem famoso é o de Rufina, uma jovem que, no dia do seu aniversário de 19 anos, descobriu que seu namorado era também amante de sua mãe. O peso da notícia a faz sofrer um ataque do coração e morrer. A menina foi velada, levada para a Recoleta, e seu caixão foi colocado dentro de outro féretro de mármore, que foi soldado. A avó de Rufina viajava e, ao saber da morte da neta, pegou um navio da Europa até Buenos Aires, mas não conseguiu chegar a tempo para o funeral, porque, na época, início do século passado, o transporte e a comunicação não tinham a velocidade de hoje. Desde o momento que recebeu a trágica notícia, a senhora tinha a sensação de que a neta vivia. Ao chegar a Argentina, inconformada, exigiu ver a neta, mesmo depois de enterrada, tão forte era seu pressentimento. A família atendeu seu desejo, e todos tomaram conhecimento de algo mais terrível do que o falecimento da menina. A avó estava certa em sua previsão e agora via o corpo da neta todo revirado e com arranhões nas mãos. A menina vivia quando fizeram o serviço funerário. Era cataléptica. É por isso que, ao visitar o Cemitério da Recoleta, em Buenos Aires, e olhar para o sepulcro de Rufina, verá uma moça segurando uma fechadura, com expressão vencida, e sem demonstrar força com a mão, pois ela sabe que tentar abrir a porta já é inútil.

Túmulo abandonado no cemitério de Recoleta.
Túmulo abandonado

Mas, se você não estiver com paciência para ouvir as aventuras derradeiras de algum moribundo, pode ir ao local apenas para apreciar o acervo de belíssimas esculturas que adornam os túmulos.

Os passeios com guia são diários e gratuitos, é só você checar a que horas ocorrem. Ligue 15-5614-8869 ou 15-5850-3110. Fiz a visita com guia em 2012 e em 2013 e tive sorte de não pegar a mesma pessoa como guia, porque o que uma deixou de me falar, foi complementado pela outra, e vice-versa. O exemplo mais gritante foi o do caso da moça enterrada viva, relatado a dois parágrafos atrás. A primeira guia narrou o caso com uma emoção e uma riqueza de detalhes que deixou a todos tocados com o fato. Já a última guia de cara já falou que a “história” de Rufina não passa de uma lenda, acabando, assim, com a comoção que tomava conta da minha vida há mais de um ano. Não sei se foi melhor ou pior ela ter falado que eu fiquei um ano acreditando numa lenda. Tem umas coisas que conseguem se manter vivas mesmo sem nunca terem existido.

:: Escrito de acordo com a ortografia brasileira ::