Poderá um só homem averbar do carácter de um lugar? Pepe, o artesão de presépios, um “popolano” puro será o meu homem anátema, explicador anónimo do prodigioso carrossel napolitano. Nápoles, o mais insolente feudo do velho mapa itálico, harmonioso território do belo e do cru. Como ele, Pepe, massa inane de gente, avantajado de carnes da papada do cachaço aos pés, de batráquio, desnudos por não caberem nos sapatos e não como quem faz poses de praia. Pepe o mais fino e cândido dos patrícios.

Visto da escadaria de Santa Maggiore — onde o avisto a primeira vez depois de um dos seus pregões tonitruantes proferido como salva de canhão — soa ao anti-retrato da cidade briosa de quem se diz “ver Nápoles e morrer”. Um sátiro, fanfarrão e grotesco tirado do elenco dos “brutti, sporchi e cattivi”, os feios, porcos e maus de Etore Scolla, criatura bojuda de um baixo-relevo medieval ou ainda personagem histriónica do mais recente filme “Gomorra” — retrato fiel do bairro marginal de Scampia diariamente importado para as ruas da cidade. Pepe, macho latino de opulenta copa de seios, maternais como os de Sophia Loren, aos 74 anos ainda dona do peito mais amado da Bella Italia. Pepe, paradigma do napolitano controverso, um brutamontes ternurento habilitado a bate-bolas de “pompino” à lírica de Petrarca.

Voltemos ao homem evitado como os vira-latas, os leprosos, os abjectos. E, no entanto, ele sempre esteve lá, desde Bizâncio e dos Bourbons, no coração de Spaccanapoli, onde os estrangeiros compram hoje réplicas dos presépios mais famosos do mundo. Podereis vê-lo um dia e assegurar do que digo, ali, entre a Via Pasquale Saura e a Benedetto Croce, sentado num robusto banco de cedro à porta da sua oficina como uma sentinela empedernida na guarita. Sentou-se ali no dia em que as mãos lhe pregaram a partida, aos 40 e poucos anos, enfermo de uma obesidade mórbida. Jura-me que dali só sairá para dentro da urna e crê piamente no seu lugar de “gordo artesano” no presépio do Altíssimo, de preferência ao lado do carpinteiro José. Pepe é o guardião da oficina onde mãos diligentes trabalham a madeira e o barro como quem tempera o aço, ou como o cinzel de Dante, o sumo poeta do pedestal no Centro Antiquo.