Durante a hora que o tuk-tuk demorou até chegar ao terminal, fui várias vezes reconfortando o espírito pensando: “dentro de pouco tempo estarei no autocarro, poderei encostar-me e dormitar um pouco antes que o calor aperte”. Agora era claro que isso seria de todo impossível a minha luz ao fundo do túnel passou a ser a piscina – que viajar não pode ser só dureza e desconforto – do hotel em Old Bagan, onde iria ficar os dias seguintes, mas com a diferença que esta luz ao fundo do túnel estava agora a uma dezena de horas de distância.

Pouco a pouco foram chegando os restantes passageiros, alguns dos quais iriam fazer a viagem quase toda connosco, como é o caso de uma jovem mãe e o do filho que, tal como eu, passou grande parte da viagem com a cabeça metida do lado de fora da janela – pelo menos enquanto não dormia ou eu me metia com ele. Em mais de trezentos quilómetros e dez horas de carreira local, houve muita gente que entrou e saiu num sem número de paragens. Felizmente a lotação nunca esgotou. É que os bancos para além de altos, duros e demasiado direitos, eram também demasiado estreitos para acomodar duas pessoas lado a lado, mesmo sendo uma dessas pessoas um pequeno e atlético birmanês. Menos outro problema!

Pontualmente às cinco da manhã arrancámos para Nyaung-U: a porta de entrada para Bagan. Em Myanmar tudo parece ter uma abundância fora do comum, com demasiada gente para cumprir um serviço, pelo menos aos olhos de um europeu. Restaurantes com mais empregados do que mesas para clientes, ou hotéis com tantos funcionários que por vezes se perde a conta de quanta gente ali trabalha, são apenas dois bons exemplos. No nosso autocarro, com uma lotação de apenas vinte pessoas, havia um condutor, único para toda a viagem porque aqui não há limites legais que obriguem a períodos de descanso; o cobrador que recebia o dinheiro dos bilhetes, que devia ser mandava ali e passou o tempo quase todo sentado; e, por fim, a minha personagem preferida dos transportes públicos em Myanmar: o faz-tudo que carrega as bagagens para dentro, coloca o calço de madeira na roda mal o autocarro pára e fica a maior parte do tempo pendurado na porta, anunciado o destino e ajudando nas ultrapassagens.

Interior de um autocarro em myanmar
A porta do autocarro manteve-se aberta durante a viagem inteira, o que permitiu deixar cair um daqueles caixotes em andamento.

Ajudar nas ultrapassagens é essencial em Myanmar, tendo em conta que nos anos 70 passou-se a conduzir à direita, mas a maior parte dos veículos em circulação não estão ainda preparados para tal: são anteriores a essa mudança ou são os usados em terceira mão importados do Japão. Seja como for, em ambos os casos, o volante está à direita, pelo que ter um par de olhos extra para ajudar com o tráfego em sentido contrário é essencial! O nosso faz-tudo era um verdadeiro personagem, um “Cristiano Ronaldo wanabee”, provavelmente da mesma idade do original mas um pouco mais “gasto”, com bigode e vestido de longyi, constantemente a mascar betel. No autocarro qualquer das três personagens mascava, mas ele em particular. Mascava como se não houvesse amanhã, tanto que demorei a perceber se tinha uma falha grave de dentição, ou se tinha os dentes mais manchados de vermelho que vi em todo o país. Mais tarde, e com a luz do dia, percebi que era a segunda opção. Talvez fosse ali a sua fonte inesgotável de energia. É que para além de todas as funções que acumulava, não parava sentado e estava sempre atento aos Budas reclinados e pagodes que se cruzavam no nosso caminho, que prontamente gostava de me apontar, já para não falar das muitas vezes que se deslocava à porta para cuspir os escarros tingidos de vermelho do betel.

O autocarro foi passando por paisagens tipicamente asiáticas e outras nem por isso, como é o caso dos enormes vinhedos trazidos pelos ingleses – a última coisa que se espera ver na Ásia são latadas carregadas de cachos de uva. Pouco a pouco, sempre por estradinhas locais, o caminho foi-se afunilando num serpentear que se aproximava de Kalaw. Infelizmente era dia de mercado, e digo infelizmente porque não tive oportunidade de parar para juntar mais uns “disparos” fotográficos à minha colecção de mercados de Myanmar. É que apesar de o autocarro ser daqueles que paravam em todas as capelinhas, as paragens são sempre feitas, sem excepção, num verdadeiro contra-relógio e com o mesmo ritual: ainda em andamento, o “faz-tudo” anuncia a plenos pulmões o destino – acredito que era isso que dizia – e salta porta fora até que o autocarro se imobilize para accionar o travão de mão – colocar o calço de madeira numa das rodas. Segue-se um verdadeiro cerco de vendedores que tentam vender uma “bucha”, quase sempre através das janelas, enquanto entram e saem os passageiros. Por fim é dado o sinal para o condutor retomar a marcha, sendo que o pagamento e o acordo para o local de saída são já feitos em andamento. São dezenas de paragens ao longo de uma viagem que não parece ter fim, na generalidade dos casos com um intervalo de breves minutos, e onde apenas três são ligeiramente mais demoradas: o almoço, sete horas depois de arrancarmos e a primeira vez em que estiquei as pernas; e dois abastecimentos de diesel, um deles numa das muitas “áreas de serviço” que vendem combustível em antigos garrafões de água.

Restaurante junto a uma estrada lamacenta, durante a madrugada.
Restaurante, à beira da estrada, que se prepara para abrir ou fechar durante a madrugada. Por aqui os ritmos e horários nem sempre são óbvios.

Sendo Kalaw uma base popular para vários trilhos de trekking na extensa região montanhosa que a envolve, à medida que a estrada penetrava o coração da região, foi-se tornando cada vez mais um trilho e menos uma estrada – cada vez mais terra batida e cada vez menos alcatrão. É possível que a última manutenção tenha sido feita pelos ingleses, ainda antes da Segunda Guerra Mundial, tais eram os solavancos, mesmo viajando a uma velocidade próxima da marcha humana. Em tempos contaram-me que quando se corre uma maratona, o corpo chega a um ponto que deixa de doer. Algures por esta altura aconteceu o mesmo com o meu, pois é como que se tivesse assimilado que as coisas não iam melhorar e que não valia a pena queixar-se. O certo é que a viagem ficou bem mais tolerável a partir daqui.