No vastíssimo Império do Meio, existem cinco montanhas sagradas para os taoistas. Uma delas é a montanha Hua, que se pode traduzir como a “Grande Montanha do Oeste”, e está localizada aproximadamente a cento e vinte quilómetros da antiga capital imperial de Xi´an (西安), na província de Shaanxi (陕西). Numa das múltiplas estações de autocarros existentes na quente e grande urbe, aconteceu a primeira mini aventura da minha estreia em montanhas. Já com o bilhete na mão, corri como uma barata tonta entre revisores e motoristas mostrando o bilhete para saber que autocarro apanhar, uma vez que nestas terras orientais é apanágio não existirem indicações legíveis para leigos do mandarim – a numeração de autocarros e/ou plataformas está apenas indicada com carateres. Durante o trajeto, que durou sensivelmente uma hora e meia, tive de ir muito concentrado para perceber o momento exato em que deveria abandonar o autocarro, uma vez que a montanha não era a paragem terminal. Não existiam indicações físicas do local onde me encontrava e apenas se ouvia a voz do motorista – para quem não percebe patavina de mandarim, é uma tarefa complicada – emitida por colunas roufenhas.

Em Huà Shān (华山), a ascensão faz-se calcorreando degraus e os primeiros quatro quilómetros – a partir do portão Oeste – percorreram-se sem dificuldades acrescidas. Nesse período destaco os múltiplos templos taoistas que visitei – alguns em reconstrução e com trabalhadores a dormir à sombra –, os diferentes altares que observei – uns bastante “ricos” e coloridos, outros mais humildes, mas todos com oferendas de velas e incensos – e os malabarismos de um rapaz no topo de um rochedo! De arrepiaaaaaaaaaar! Assim que apareceram os primeiros cadeados com fitas vermelhas presos nas correntes laterais que auxiliam os caminhantes nas zonas mais íngremes e os separam dos penhascos, o caminho tornou-se mais sinuoso e a montanha branca e creme, coberta pontualmente por uma vegetação seca, começou a revelar faces escarpadas que pareciam cortadas com uma faca afiada.

Trabalhador da construção a dormir à sombra da entrada de um templo
Repousando
Cadeados e fitas vermelhas. Os símbolos dos desejos dos peregrinos e turistas
Desejos
Escadas escavadas na rocha na zona do Precipício dos Mil Pés
Vertiginosas

Duas horas volvidas desde o início da caminhada, estava a almoçar dumplings frios nas traseiras de um tranquilo templo taoista na companhia de uma árvore centenária. Depois desse momento “zen”, a ascensão complicou-se exponencialmente à medida que fui encontrando inclinações absolutamente vertiginosas, principalmente nas zonas do Precipício dos Mil Pés e da Fenda dos Cem Pés. Quando atingi o topo do Pico Norte (1614 m) e anfiteatro de eleição para os restantes quatro picos – Huà Shān (华山) é uma montanha de cinco picos: Norte, Sul, Este, Oeste e Central –, estava verdadeiramente FELIZ! Sendo esse sentimento provocado pela oportunidade de presenciar algo belo, depois de o ter “conquistado”. Nesse momento, não pude deixar de refletir sobre os montanhistas, alpinistas e praticantes de trekking e em tudo o que eles devem experienciar – quanto maior o esforço ou provação para atingir determinado topo ou pico, maior o seu sentimento de felicidade.

Depois de repousar um pouco, recomecei a caminhar por volta da hora “coca-cola light”. Nessa hora em que o céu estava radioso, e porque tinha uma enorme quantidade de roupa extra guardada na mochila, comecei a ponderar seriamente em dormir ao relento, nalgum lugar abrigado e o mais próximo possível do Pico Este – o pico de onde se pode ver o nascer do astro rei. Durante a secção do Jin Sue Guan – a secção que liga o Pico Norte aos restantes picos principais –, fruto da inclinação “diabólica”, o meu corpo e a minha mente foram verdadeiramente desafiados. Depois de atingir o Pico Central (2037 m) tudo se tornou mais fácil e quando cheguei ao Pico Oeste (2082 m), a luz dourada do sol afagava serenamente a face do Pico Sul. Porém, nesse momento de grande beleza, o meu estado de espírito não era o mais tranquilo, uma que vez que instantes antes fui avisado por dois caminhantes – um americano e um neozelandês – das condições adversas que se poderiam fazer sentir-se durante a noite – o vento, o frio e as baixas temperaturas que podiam ocasionalmente atingir os graus negativos – começando a sentir-me desanimado relativamente à possibilidade de dormir ao relento.

Quando atingi o Pico Sul, o mais elevado (2155 m) de Huà Shān (华山), a noite caía rapidamente e assim que comecei a descer em direção ao Pico Este (2096 m), já as luzes dos trilhos estavam ligadas e iluminavam fracamente os degraus. Entretanto, ao observar com uma atenção redobrada zonas de possíveis abrigos, notei que de facto se via neve em alguns locais, inclusivamente nos degraus! Tentando não perder totalmente a esperança, continuei a procurar, equacionando várias possibilidades, entre elas abrigar-me num templo em reconstrução. A meio da descida, deparei-me com duas grandes tendas. Instantaneamente parei e comecei a vasculhar a mochila à procura de um papel – escrito em carateres – que tinha a pergunta: “Quanto $ pela estadia?”. Nesse momento, saiu um homem do interior de uma das tendas e eu fiz-lhe sinal para esperar – enquanto continuava a procurar o papel. O homem ficou completamente imóvel a olhar para mim, enquanto eu tirava papéis, papéis, papéis, papéis… mais papéis e, finalmente, passados quatro minutos intermináveis, lá achei o que procurava.  Ao mostrar-lho, ele fez-me sinal para segui-lo para dentro da tenda…