O anfitrião da Invicta diz com ênfase profético: “Se o pão-de-ló tem pito vale todos os sacrifícios”. Ter “pito” é ter mão na colher e dar glória à gemada. Ou seja, é caso para vir de Lagos a Ovar (ou Espinho e Esmoriz) provar o néctar de uma guarnição de ovos. Carlos Romero, tripeiro e devoto de Cápua, garante que nem as pipas, moliceiros e conchas dos pasteleiros de Aveiro batem as gemas e as mãos papudas das confeitarias de Ovar. Nisto de asseverar das coroas, o importante é ir aos lugares certos e finamente aconselhado. Por exemplo, provar o dito pão-de-ló numa esplanada secular das praias de Furadouro ou Cortegaça virado para as barracas listadas onde avózinhas vestidas de Inverno fazem croché e cuidam dos netos berrando avulso entre cada ponto de cruz. “Cuidado com as correntes; olha os fundões; não vás para longe, olha que o mar está bravo” ecoam as vozes esganiçadas e os bordões. É ver então, de pão-de-ló no buxo e um cálice de branco do Porto, a alegria da canalha franzina e a tiritar, aos chapões e flique-flaques, encarrapitados nas rochas como mergulhadores de Acapulco.

Belo começo atávico, antes de nos fazermos à estrada, ao Sul, para lá da mítica Serra do Caldeirão e das suas 365 curvas e contracurvas (onde ainda passam caravanas de ciganos nómadas), na rota das antigas estradas nacionais repletas destas e doutras imagens de antanho. Ocorre o pensamento: que diriam as papilas gustativas se este pão-de-ló fosse comido defronte ao rio Arade, entre portimonenses e estrangeiros de ocasião? Ou se pedisse agora um Dom Rodrigo e um cálice de medronho ou uma sandes de leitão e um pires de grão-de-bico? Que muda o entendimento de um lugar ou paisagem se atravessar o Douro pela Arrábida a toda a brida ou pela ponte D. Luís a passada de burro e de olhos postos nos engenhosos socalcos e nas barcas na cova do rio?

“As auto-estradas são pistas de autódromo. Existem para servir os velocistas e a riqueza da Brisa. Anda-se depressa, mas come-se quase sempre mal”, diz o proverbial Carlos. As estradas nacionais farão, por antónimo, as delícias dos revivalistas e amigos do petisco que não se ralam com viagens esgalhadas mas com pratos bem esgalhados. Aqueles que guardam memórias felizes dos carapaus de escabeche ou do arroz de tomate malandrinho ao balcão do Manjar do Marquês, de Pombal, ou das orgulhosas travessas de cozido à portuguesa do pioneiro restaurante Canal Caveira, na terra homónima, que mudou de dono há um par de anos, mas mantém a eficácia no preclaríssimo prato do cardápio. Depois de andar um par de dias por estradas caídas em desuso (N10, EN1, IC2, IC1…) conclui-se que o mais valioso desta deambulação anacrónica é o tempo para o ócio e a contemplação que as auto-estradas não permitem. Poder entrar e sair do caminho a bel-prazer sem a caução da portagem; apanhar malmequeres e gerberas dos prados alentejanos a perder de vista como sempre fazia a fadista Amália e a levou a descobrir pérolas como o Brejão (e onde dei com a Aldeia dos Palheiros quando andava à cata de sementes de gergelim instruído por um pastor de chibos); aviar genuínos cabazes de melão, cavacas, bolinhos de batata-doce, vinho do produtor, eiras valiosas a abarrotar de pinhões, amêijoas “boas” do Sado (como informa a tabuleta sem mentir); de botequins (tão frequentados como as praias) improvisados à beira da estrada ainda a salvo dos diligentes censores do petisco ao natural; trocar umas palavras de circunstância com amáveis meninas de roupa encolhida e saber o preço dos “beijinhos” e da “giraldinha” fora das grandes metrópoles, além de nos inteirarmos por uma patrícia de Putín, emigrada na Ventosa do Bairro, de que o negócio do velho ofício também anda em crise.