Os últimos raios de sol dardejam a cidade, em mais um fim de tarde solarengo. As pessoas em passo calmo regressam a casa depois de um dia de trabalho, perdendo-se num ou noutro bar para trocar dois dedos de conversa com amigos antigos, ou de ocasião.

Sentado na Fortaleza de Kalemegdan, sinto o pulso da cidade. Parece ter pressa em recuperar o tempo perdido e esquecer o passado recente, marcado pelas cicatrizes que a guerra lhe deixou.

Diante de mim, confluem os rios Sava e Danúbio, que conferem à cidade a sua alma.

Daqui, a panorâmica da cidade é fabulosa, nesta que foi considerada o coração da antiga Jugoslávia.

Consigo sentir-lhe a pulsação.

Fechei os olhos. O sol já vai baixo, mas ainda sinto o calor dos seus raios a tocar-me no rosto. Apurei os sentidos.

Tum tum.

Tum tum.

O coração da cidade ainda bate, e bate cada vez mais forte. A guerra não conseguiu fazê-lo parar.

Abro os olhos, e concentro-me novamente na cidade e no rio, que se estende perante mim. A mudança de tonalidades é deliciosa, à medida que o sol se esconde. Desfruto do maravilhoso fim de tarde, com o sol a venerar-se perante o coração.

“Tens um cigarro?”

“Não. Não fumo.”

Fui interpelado por um indivíduo de aspecto duvidoso, com uma cicatriz na face. Tinha tido a coragem de interromper aquele meu momento mágico.

“Tenho fome”, insistiu.

“Não me orientas uns trocos?”

Desejoso que me deixasse em paz, para poder continuar a desfrutar de tão grandioso espectáculo, coloquei a mão no bolso, sem tirar os olhos do horizonte, e dei-lhe as moedas que tinha, sem saber ao certo quanto dinheiro era.

”Obrigado”, agradeceu.

”És turista”, continuou.

“Não, sou viajante”, respondi sem tirar os olhos da cidade.

”Sabes, também já viajei muito. Agora sou mendigo. Abandonei a casa, mulher e filhos. Traumas da guerra.”

“Lamento. Combateste na guerra?”, perguntei olhando-o de frente pela primeira vez.

”Combati. Matei gente. Na guerra mata-se ou morre-se. Eu optei por não morrer. Mas a vida que tenho hoje, deixa-me a pensar se não teria sido melhor deixar alguém viver no meu lugar.”

“Não digas isso. Sou o Pedro, prazer.”

“Sou o Milanovic. Durmo ali naquele banco de jardim. Serás bem-vindo à minha casa, sempre que queiras.”

Quando olhei novamente para a cidade, já o sol se tinha posto.

“Estás em viagem por onde, viajante?”

“Estive na Croácia, Eslovénia, vim à Sérvia e ainda vou para Montenegro.”

ruinas da fortaleza de Kalemegdan em belgrado
Fortaleza Kalemegdan (praça do castelo), situada em Stari Grad, Belgrado
© George M. Groutas ( CC BY 2.0 )

“Estás a gostar?”

”Estou apaixonado, é tudo lindíssimo. Deixei um amor em Dubrovnik.”

”Um Amor? Apaixonaste-te por uma Croata?”

”Não, apaixonei-me pela cidade.”

”É linda, não é? Estava numa das fragatas que a bombardeou. Senti-me a apunhalar o meu próprio coração, cada vez que o comandante gritava “fogo”. Mas é a guerra. Percebes agora porque a consciência me pesa?”

“Já jantaste?”, perguntei-lhe.

“Ainda não. Mas não janto quase todos os dias.”

”Vem comigo então, preciso de companhia para o jantar.”

No dia seguinte levantei-me bem cedo. Gosto de sentir o fresco da manhã beijar-me o rosto, como se me desejasse os bons dias.

Voltei à fortaleza, local onde tinha estado ontem ao final do dia, passei pelo banco de jardim que Milanovic considera ser o seu lar, mas apenas estavam uns cobertores desdobrados no chão.