Olhei por cima do ombro mas nada vi.

Desde que tinha chegado a Chefchaouen, perseguia-me a incrível sensação de estar a ser observado.

Simulei entrar em algumas ruelas e sair por outras, na expectativa de cruzar o meu olhar com os olhos que me seguiam.

Nada aconteceu.

Continuei a deambular por ruas estreitas e íngremes, pintadas de cal áurea com uma faixa azulada em rodapé.

Refugiei-me num pequeno alpendre e aguardei. A pulsação subia tanto como a expectativa de ver aparecer alguém.

Que lhe diria?

Os segundos passaram como se fossem minutos, e a tensão foi baixando aos poucos até se desvanecer por completo.

Não passava de imaginação. Por vezes, quando a temos fértil, somos apanhados nestes pequenos jogos que fazemos a nós próprios.

Apetecia-me ver gente, rodear-me, para não me sentir só. Dirigi-me até à Praça Uta El-Hammam, no coração da velha cidade. É o ponto central para onde convergem todas as ruas da Medina.

Cidade de Chefchaouen no sopé da montanha debaixo de um céu azul.
Cidade de Chefchaouen no sopé das montanhas do Rife.
© Singa Hitam ( CC BY 2.0 )

Esta maravilhosa praça, ladeada de árvores, possui no centro uma fonte decorada com arcos. Palmilhei o empedrado até lá e lavei o rosto com a água refrescante que dela brotava.

O fervilhante mercado estendia-se ao longo da praça, com tendas montadas sobre o cascalho vendendo suculentas frutas. Juntei umas moedas perdidas no bolso e comprei duas sedutoras maçãs que não tinham tirado os olhos de mim.

Na banca ao lado, um grupo de jovens comprava descontraidamente haxixe, com a mesma tranquilidade que comprei as maçãs. Com o mesmo à vontade que trinquei a maçã, eles bafejaram o haxixe. Tudo na maior descontracção.

No meio da multidão senti-me protegido, apesar de pressentir pelo menos um par de olhos cravados em mim, como se fossem miras. Para qualquer lado que olhasse não via ninguém a observar-me, pelo menos de forma suspeita.

Que se passaria comigo?

Estranha sensação, esta! Logo eu que nunca tivera a mania da perseguição.

Embrenhei-me novamente pelas ruelas apertadas de Chefchaouen, que de tão estreitas que eram, quase permitiam que tocasse em ambas as paredes, se estivesse de braços abertos. Caminhei até à Medina.

Pátios alegres exalavam o aroma das flores, que coloriam cada recanto como se participassem no concurso do “pátio mais colorido”.

Parei.

E os passos que me seguiam pararam também.

Retomei novamente a minha passada calma, atento a todos os sons que me rodeavam.

Algumas pessoas regateavam preços, outras apenas conversavam por entre enormes risadas, ao longe o som de uma música árabe, e até os cascos de um burro consegui discernir a bater no cascalho.

Mas as passadas continuavam lá, cautelosas, retomando a marcha quando eu também iniciava a minha, e parando quando eu me paralisava.

Eram passadas perseguidoras, às quais não consegui associar qualquer rosto ou olhar. Eram passadas que estavam interessadas na minha trajectória.

Voltei a estacar, encostado a um beiral, e atentamente observei todos os movimentos que me rodeavam. Rostos normais, iguais a tantos outros, com passos cúmplices e pouco suspeitos à minha ingénua avaliação.

Os minutos passaram, sem que nada de anormal acontecesse, os rostos iam passando pela pequena praça, sempre mutáveis, sem que nenhum em especial permanecesse mais tempo do que poderia suspeitar.

Oculto-me por uma rua mais estreita e apresso o passo.

Atrás de mim os passos apressaram-se também. Estuguei o passo, para seguidamente desatar a correr com todas a minhas forças.

Deixei de ouvir passos, apenas foquei o caminho à minha frente na esperança de chegar a uma praça qualquer, desde que estivesse cheia de gente.

Olhei por cima do ombro, mas nada via.

No entanto os passos pareciam cada vez mais próximos.

Quando olho para a frente, saem dois homens de uma pequena portinhola perdida no meio das paredes de cal, e puxam-me para o seu interior. Sem qualquer capacidade de reacção, foi como se tivesse sido engolido pelas paredes. Encontro-me instintivamente no interior de uma casa pobremente mobilada.

Escassos segundos depois, entra pela mesma porta com as mãos nas ancas e visivelmente fatigado, os passos que me seguiam.

Porta decorada a azul de uma das muitas casas da medina de Chefchaouen.
As portas das casas são vezes pintadas com decorações típicas.
© Singa Hitam ( CC BY 2.0 )

Associo o rosto cansado aos passos, e apercebo-me que tinha sido todo o dia observado e perseguido.

Não tinha sido fruto da minha imaginação.

O diálogo foi curto e grosso. Entre entendimentos e desentendimentos, ficaram com todos os objectos de valor com a excepção dos documentos.

Por muito que tentasse negociar, a máquina fotográfica e respectivas fotografias ficaram “apreendidas”, sem direito a retorno.

Libertaram-me de olhos vendados após algumas voltas pelas ruas tortuosas, para perder a noção de onde ficava a casa do roubo.

Já sozinho segui até ao hotel, sem barulho de passos no meu encalço.

As lágrimas caíram-me pelo rosto, enquanto pensava que me tinham sido roubados os momentos guardados na máquina fotográfica.

Dei um grito de revolta por me ter sido extorquido o meu maior tesouro, os momentos.

Depois um sorriso desceu pelo meu rosto.

Os momentos roubados nunca apagariam as memórias de Chefchaouen.