O escuro da madrugada é interrompido pelo tocar do sino. São apenas 5 horas e 45 minutos da manhã, os trabalhadores da “Hacienda Dolores” têm somente 15 minutos para se formarem no amplo pátio empedrado azul celeste, em frente ao palmeiral.
Chamar-lhes trabalhadores pode soar a ironia, uma vez que não estão ali por vontade própria, não possuem qualquer contracto vinculativo, e auferem uns míseros pesos. Alguns foram inclusivamente comprados como se fossem mercadoria, pelo proprietário da “Hacienda”.
O sino volta a tocar, os 15 minutos já passaram, o céu ainda está escuro apesar de se vislumbrar pequenos laivos de luz no horizonte.
A formação decorre ordeiramente em pequenos grupos de 20 homens, que se apresentam descalços, roupas rasgadas e sujas e com um aspecto mal nutrido. Todos eles estão “marcados” com uma chapa pendurada ao pescoço que identifica a “Hacienda”, apresentando o “número mecanográfico” de cada um.
À medida que as formações se vão completando, cumprimentam o capataz, levantando a mão direita, em sinal de obediência. Todos eles têm uma catana presa à cintura, indispensável para cortarem a vegetação no mato e abrir caminho, ou defenderem-se de algum animal indesejado.
O amplo pátio está coberto em todo o seu espaço. São cerca de quatrocentos homens, que vão recebendo ordem para subirem para as carroças. Grupo a grupo, dirigem-se para a plantação de café, desaparecendo na escuridão da selva serrada.
Aos primeiros raios de luz a “Hacienda” acorda ficando repleta de vida, entre as conversas das mulheres e os gritos das crianças. Uma delas sai a correr em direcção a um terraço interior, onde um homem está amarrado a uma estaca enorme.
O negro, no seu corpo desmaiado, mal consegue suster-se de pé, sendo impedido de cair para o chão, pelas cordas que o envolvem. As roupas estão completamente esfarrapadas e ensanguentadas, sendo bem visível os hematomas causados pelas pancadas que levou. Descalço, e com os pés em sangue, cortados durante fuga num canavial a mil metros dali. As costas estão expostas ao sol, em carne viva como se tivessem sido traçados riscos vermelhos, desenhados pela violência do chicote do capataz.
Maria aproxima-se, e chorando pergunta-lhe.
“Porque fugiste novamente José?”
Com o olho esquerdo completamente cerrado pela força das feridas, olha para Maria com o olho direito semicerrado, e sorri.
“Porque apesar de tu estares cá, eu aqui não sou feliz. Aqui jamais serei livre. Serei um escravo toda a vida.”
Por volta das 10 horas da manhã o sino toca novamente para que seja servida a primeira ração do dia, composta de farinha e arroz cozido. Será a primeira das três que serão servidas no decorrer do dia, e o menu não varia independentemente de ser manhã, tarde ou noite ou do dia da semana. Por cada grupo de homens é distribuído um cantil de água, que deverá ser racionado pelos elementos que o constituem.
As mulheres encarregam-se da secagem do café, da confecção da comida e manutenção da “Hacienda”, até que os seus homens regressem das plantações cansados e cabisbaixos com os braços estendidos ao longo do corpo, por volta das 6 horas da tarde. A luz do dia é aproveitada até ao último minuto pelo proprietário, obrigando os seus homens a trabalhar de sol a sol.
Cem anos depois, encontro-me na “Hacienda Dolores”, assim denominada em homenagem à mulher do antigo proprietário que faleceu nova, devido a uma doença tropical.
Em frente à enorme estaca onde José esteve amarrado, acaricio-a e consigo sentir nas mãos o desgaste da madeira provocado pelo passar dos anos, pelas chuvas, pelos sois, pelas verdascadas dos chicotes, e pelos corpos ensanguentados que por aqui passaram. Sinto-o na palma das minhas mãos, sinto-o por entre os dedos e deixo-me emocionar.
Uma lágrima escorrega-me pelo rosto, enquanto venero toda a beleza da “Hacienda” e da selva luxuriante que a envolve, interrogando-me.
Como é possível que tenha havido tanta dor, num palco tão belo?
Santiago esteve desde sempre ligada à exportação do café, o seu aroma emana pelo ar até se perder na boca, sendo saboreado com prazer.
Muito quente e húmida, tem uma personalidade própria que a caracteriza, com traços artísticos entre as montanhas da Serra Maestra, e uma grande baia que nos seduz como se fosse uma esbelta mulher.
Os cubanos não têm dúvidas em afirmar, que as mais belas mulheres do país se encontram em Santiago. A mim não me resta outra alternativa, senão acreditar.
As ruas descem pela montanha, com se fossem afluentes de rios a desaguar no mar. São bastante longas e coloridas, repletas de vida e gente para qualquer lado que olhe.
A alegria é contagiante, e como em qualquer lugar de Cuba, o chachacha é uma constante sinfonia nos nossos ouvidos, fazendo-nos adoptar um passo de dança no decorrer da caminhada pela cidade.
As pessoas são muito bonitas, com traços muito variados caracterizados pelas misturas, conferindo-lhes uma beleza invulgar. A população é predominantemente mulata sendo uma mescla de espanhóis, franceses do Haiti e escravos africanos.
História, cor, cheiro, beleza, calor… Fiquei com vontade de sentir, viver e poder conhecer eu própria, cada momento mágico deste texto…
história, cor, beleza, cheiro, calor… fiquei com vontade de ser eu mesma a sentir, a viver e apreciar cada pedaço deste texto ao vivo.
Fantástica. Uma história emocionante. Um relato comovente. Um outro olhar sobre Cuba que aguça o desejo de conhecê-la.
Conheço Cuba, mas não conheci Santiago. Se voltar a Cuba não hesitarei em passar por lá.
A forma como a “Hacienda” foi retratada está fantástica, de forma muito cruel, como se passava na realidade, mas ao mesmo tempo com muito sentimento.