São 4 da manhã quando toca o despertador. Só um motivo muito importante me faria levantar a estas horas, em terras de África.

Na realidade o tempo por estas bandas não existe, vivem a um ritmo muito próprio, acabando o relógio por ser um instrumento supérfluo. As preocupações focam-se apenas para o presente, amanhã logo se vê.

Estou de partida para um passeio de balão, que irá sobrevoar as vastas planícies de Serengueti. A expectativa, essa, quase não me deixara pregar olho durante as escassas horas de sono.

O motorista com o seu ar tranquilo esperava-nos no seu “Land Rover”. O seu nome é Good Luck, foi um nome que os pais acharam por bem baptizá-lo, uma vez que era o nono filho e por isso precisava de sorte para poder sobreviver num país como a Tanzânia, quando se tem mais oito irmãos.

Ao que parece o nome deu-lhe mesmo sorte, já que tem uma das melhores profissões do mundo, e exerce-a num dos locais mais deslumbrantes do planeta.

Esperava-nos uma hora e pouco de caminho, pelos trilhos da savana que ainda estava escura como breu. A partida de balão estava separada do acampamento por uma distância de aproximadamente 50 quilómetros.

Breves minutos após termo-nos feito aos trilhos, ouvimos o barulho ensurdecedor de cascos inquietos a baterem no chão, num trote desenfreado.

Seria possível estarem todos acordados a esta hora da madrugada?

É a força portentosa da natureza. A África selvagem, e mãe, proporcionando-nos sentimentos, intensidades, cheiros e aventuras a cada minuto que passa.

Estávamos a passar pelo meio da migração de Gnus, que todos os anos, no decorrer dos meses de Maio e Junho, percorrem centenas de quilómetros deixando a parte sul do Serengueti, para se deslocarem para o Quénia, onde as chuvas lhes proporcionarão pastagens mais verdejantes, água e temperaturas mais amenas. Chegam a ser mais de meio de milhão entre gnus, gazelas e zebras formando colunas de mais de 40 quilómetros de extensão, proporcionando um espectáculo de beleza natural único, sendo por isso um dos objectivos deste passeio de balão, sobrevoar a migração. Calcula-se que 1,8 milhões de gnus percorram todos os anos 1450 quilómetros, sendo esta uma das últimas grandes migrações de animais no planeta.

No entanto, o trajecto não foi fácil. Gnus por todo o lado, um espectáculo arrepiante no escuro da savana. Pouco se conseguia vislumbrar, além do pára-brisas do jipe, o que fez com que todos os outros sentidos estivessem mais atentos.

Sentia-se perfeitamente o chão a estremecer por debaixo do jipe, criando a sensação de que a terra estava em movimento.

A mãe terra estava viva e bem viva, exercendo ali uma pequena demonstração da sua força.

Por outro lado, ouvia-se um barulho ensurdecedor, de milhares e milhares de cascos a trotar na terra batida, vermelha, mas que na escuridão da madrugada se deparava negra, demasiado escura para poder distinguir a sua cor.

E o cheiro?

Que aroma o da madrugada fresca, da adrenalina que pairava no ar, da selva e da sua vegetação luxuriante, enfim um agrado para os sentidos.

Os gnus comportavam-se como se participassem numa competição, tentando chegar antes do outro, ao local para o qual se dirigiam todos os anos.

De súbito um estrondo enorme, que acabou por desviar o jipe da rota pretendida. Dois gnus embateram violentamente na viatura, tendo danificado uma porta e destruído por completo o espelho retrovisor.

Assustados no meio da escuridão, surpreendidos com tamanho imprevisto senti a pulsação subir. Quem diria que iria ter um dia tão intenso, e ainda nem eram cinco horas da manhã. O Good Luck, talvez por confiar demasiado no nome, saiu do jipe para avaliar os estragos que tinham sido feitos, enquanto os milhares de gnus continuavam a passar por trás, pela frente, e por qualquer lugar para onde olhasse.

Pedimos-lhe que fizesse o favor de entrar novamente no jipe para podermos prosseguir viagem, não fosse também ele ser abalroado por um gnu enfurecido, podendo a aventura transformar-se em tragédia.

Chegados ao local de embarque, a expectativa em subir era grande, até porque iríamos desfrutar do nascer do sol a partir do céu. Além disso, poderíamos observar a migração, felizmente de um local mais seguro.

Toda a equipa desempenhou vários tipos de funções no enchimento do balão de ar quente, para que a subida fosse efectuada ainda antes da alvorada, essa teria de ser apreciada lá de cima, por dizerem ser um momento mágico na vida de cada um que tivesse esse privilégio.

Subimos, subimos, subimos, suavemente e sem tempo, à semelhança de tudo o que se faz em África, e já se notava no horizonte as cores avermelhadas tão características, e que apenas estamos habituados a ver nos postais turísticos.

O avermelhado vai cedendo lugar ao laranja, e continuamos na nossa experiência dos sentidos, não pelo cheiro, nem pelos sons, porque aqui o silêncio era absoluto, como se tivéssemos chegado ao céu. Senti-me invadido pelo silêncio das alturas, e com uma sensação de liberdade incomensurável.

Os meus olhos não cabiam em si de contentes, estimulados pela visão deslumbrante daquilo que lhes era dado ver. O cérebro, inundado por todas as imagens que os meus olhos lhe transmitiam, deveria estar a agradecer tamanha dádiva, que os mesmos lhe proporcionam neste momento.

É um deslumbre tudo o que planamos. Tanta beleza, tanta exuberância, tanta vida, tanta calma, e tanta agitação, apenas 200 metros abaixo de nós.