Nos céus ecoam as badaladas do sino do campanário, como a querer dizer “presente”. Olho para cima, e lá está ele no alto da sua torre, vigilante sobre tudo o que se passa cá em baixo, como se nos protegesse de qualquer intempérie.

Mesmo à sua frente uma fila enorme de turistas, que espera a sua vez para entrar na Basílica de São Marcos, considerada o símbolo da cidade e todo o seu esplendor, visto estar intimamente ligada a toda a sua história.

Olho para o chão feito de água, que me suspende, e deixo cair uma lágrima que se desfaz no mar da laguna. Sinto-me triste por fazer parte deste lugar, e não poder desfrutar fisicamente de certos locais.

Sinto uma injustiça invadir-me a proa, e um aperto no tolete, que quase não me deixa soltar o remo. Tenho de me afastar, preciso sair daqui.

Um casal de turistas embarca em mim desajeitadamente, deixando-me ainda mais instável.

Lá tem de vir mais um “Sole Mio”, para encanto do par. Passo por baixo da Ponte dos Suspiros, e também eu suspiro por não poder ter outra perspectiva da cidade. A ponte pisca-me o olho. Resignada com o facto de estar ali presa. Ao longo de muitos anos serviu de passagem entre o Palácio Ducale e a prisão, testemunhando os suspiros dos prisioneiros que por ali passavam, talvez se tenha acomodado a estar presa em si mesma.

Navego pelos canais mais estreitos da cidade, continuando a espreitar a cada esquina com a curiosidade cada vez mais aguçada. Por detrás dos edifícios, ressoam sons que não consigo estabelecer qualquer ligação, fazem parte de um mundo que não é o meu, o mundo terrestre.

Amigos conversam ao virar da esquina, enquanto crianças correm atrás de pombos que batem asas apressados. A água, essa continua afável a acariciar as pedras, como se marcasse o ritmo da cidade.

Volto até à Piazzetta e deixo-me amarrar ao tronco. Uma ligeira brisa irrompe pelo canal provocando um calafrio. O sol tímido já se esconde, encoberto por umas nuvens escuras que insistem em não deixá-lo espreitar.

Flutuo ao som das ondas que me afagam o casco, numa intimidade só minha e delas, enquanto o sol se vai esbatendo por completo no horizonte até cair, e submergir-se na laguna.

gôndola com turistas nos canais em veneza
Gondoleiro em Veneza.
© Iron Pedreira Alves ( CC BY 2.0 )

“Porque estás triste?”, perguntou-me o Palácio Ducale.

“Porque não posso pisar a Praça de São Marcos e ver toda a sua beleza”, respondi.

“Estás triste por isso? É por isso que choras?”.

“Falas assim porque és belo, toda a gente te quer ver e daí podes ver tudo o que eu não posso”.

“Estás enganada, tu és livre, podes navegar pelos canais, conhecer Veneza de uma ponta a outra. Podes embrenhar-te por ruelas, conhecer bairros, outras ilhas. Eu não posso sair daqui”.

“Mas és belo. Eu não sou”.

“Quem me dera ser livre”, respondeu o Palácio Ducale.

A gôndola permaneceu imóvel e susteve a lágrima que escorregava pela proa.

A ténue ondulação balouçava-a mansamente, reflectindo-a nas águas em tons de prata. Olhou-se ao espelho, e reparou em toda sua beleza.

Negra e reluzente, reflectida nas águas tranquilas da laguna. Ainda por cima era livre, podia muito bem ir para onde quisesse, conhecer Veneza de fio a pavio, sem que nada a prendesse.

Talvez fosse mesmo uma privilegiada.

A noite engoliu o dia. Os candeeiros emanavam uma luz liliputiana.

As gôndolas amarradas aos troncos continuavam a sua dança íntima com as ondas, que continuavam a segredar baixinho junto das escadas feitas de pedra.

A escuridão envolveu a cidade imersa numa ligeira neblina, como se voltasse a emergir das águas da lagoa, que a beijavam incessantemente e sem descanso.

A gôndola deixou-se adormecer enquanto o silêncio avançou sobre tudo.