Corria no ano de 1991, quando pela primeira vez saí desde pedaço de terra com forma rectangular, a que tantos apelidam de “jardim à beira-mar plantado”. Até então, e por mais incrível que isso possa parecer para muitos, nem uma simples passagem por terras de nuestros hermanos havia sido possível concretizar… Nada, nothing, rien, niente… Umas passagens pelo Gerês, serra da Estrela e pouco mais… Era a primeira vez que passava a fronteira não só física, mas também de um imaginário que durante anos povoou o meu sonho de criança.

Volvidas duas décadas, reconheço aquele longínquo ano como o culpado de uma mudança de 180 graus numa vida até então demasiado pacata. O ano de 1991 perdurará na minha memória como o responsável pelo click, despertar e contágio por esta doença, sem cura aparente, e que convencionalmente se resolveu chamar de viajar. Hoje confesso que muito poucas situações me terão feito o coração palpitar de desejo, o sangue fervilhar de emoção e a alma transbordar de tudo isto que nós sabemos que as viagens nos fazem encher.

Guardo com saudades esses dias, bem como todos os que se lhes seguiram – outros anos, outras viagens, outras histórias. Desde essa viagem, a pioneira, que nunca mais encontrei aquele sossego insano do passado. Que o desejo se apodera de mim dia após dia… Que a vontade em partir era ontem… Que a ansiedade por novas aventuras, quase me petrifica. Para muitos, aquilo a que chamamos de viagem será certamente mais um nome a adicionar a uma já longa lista existente num caderninho, que anda sempre no bolso e serve para impressionar as miúdas. Para outros, um nome que se colecciona no meio de tantos outros, quase como se de uma colecção se tratasse.

Mas será isto a verdadeira essência de uma viagem?

Será isto o que desperta? Aquilo que tem para nos dar? Será este o seu verdadeiro significado? Creio que não… Pelo menos, não para mim…

Viagem, segundo o dicionário oficial de língua portuguesa é: do Prov. viatge < Lat. Viaticu s. f., – caminhada ou outro qualquer modo de deslocação (automóvel, caminho-de-ferro, navio, etc…) para chegar de um lugar a outro, mais ou menos distantes; – longa jornada; – descrição ou relação escrita dos acontecimentos ocorridos num passeio, jornada, etc…

Mas será só isto? Apenas isto? No meu dicionário, um que já ando a escrever há alguns anos, felizmente o texto continua. E continua da seguinte forma… Viajar é:

“Estar em 1991 num país como a Polónia e participar quase como cidadão na sua libertação: a libertação de um regime que asfixiou o seu povo e procurou apagar a história.”

“Com o coração apertado e de lágrima no canto do olho, caminhar pelo interminável campo de Birkenau, Auschwitz, e encontrar um ex-sobrevivente pregado ao chão como uma estaca, que sem me conhecer ou alguma vez me ter visto, me abraçou, apertou e chorou compulsivamente.”

“Viver por duas semanas com nómadas mongóis, onde a comunicação verbal foi de todo impossível, mas onde sempre houve entendimento e cumplicidade. No final, a dificuldade foi explicar que não podia aceitar o cavalo com que fui presenteado.”

“Chegar tardiamente a uma pequena cidade húngara, não encontrar um único lugar para pernoitar e ao recorrer a um taxista, que apareceu do nada e talvez andasse mais perdido do que eu, me largou de pára-quedas numa casa de meninas. De sublinhar que fui muito bem recebido, dormi lindamente e não foram necessários os habituais serviços extra.”

“No sudoeste da China, viver no seio de uma família Mosuo e compreender, talvez como poucos, a magia desta comunidade matriarcal, bem como o verdadeiro significado das mulheres serem as líderes familiares.”

“Tomar um comboio em direcção à Lituânia e ser preso na fronteira bielorrussa sem saber porquê… Afinal o comboio não tomara a direcção desejada, tinha entrado num país que não esperava, e para o qual não dispunha de visto.”

“Ignorar regras e leis que limitam a livre circulação de turistas em algumas zonas dos Himalaias indianos, aventurar-me por caminhos difíceis e descobrir aldeias que já não acreditamos existirem.”

Viajar é isto…

São as experiências, as situações, as vivências e as pessoas – sempre as pessoas. É poder comparar realidades como a de Marrocos ou Suécia, Reino Unido ou China, Alemanha ou Brasil, Portugal ou Índia. Se mais faltasse, viajar é tão simples e só, desvendar em cada um de nós o instinto de sobrevivência, a aventura, o conhecimento de culturas, formas de estar, pensar ou agir. É a forma de podermos receber e podermos dar, sorrir e por vezes chorar, amar ou mesmo odiar. Captar instantâneos para mais tarde recordar, simples momentos, simples acções. Ver paisagens que nos fazer acreditar a existência de um paraíso. Provar riquezas gastronómicas que nos fazem regressar com alguns quilos extra ou, simplesmente, nos deixarmos enfeitiçar por formas linguísticas que muitas vezes nos fazem quase desesperar. E ainda, porque não, o fazer jus ao que reuniu os povos ao longo dos milénios – a amizade. Fazer amigos, muitos, montes deles e em meio mundo.

Viajar é o ir, mas também o voltar… Viajar é porventura das experiências mais enriquecedoras e gratificantes na vida do homem… Se muitos dos governantes e dirigentes mundiais deixassem receber das viagens aquilo que elas têm efectivamente para oferecer, certamente que nada disto seria uma utopia. Certamente que o mundo em que vivemos não seria quase uma história do faz-de-conta: uma história do mundo do nunca, como na fábula do Peter Pan. Mas até aqui existe uma viagem – a viagem entre a realidade e o faz-de-conta. Mas afinal onde não existe uma viagem? A nossa vida é uma viagem no meio de tantas outras. As viagens somos nós que as fazemos, bastando para isso que o queiramos mesmo.