Quando uma cidade está apadrinhada por séculos de tradição e as ruas, alamedas, praças e bairros parecem repetir-se em sequências infindáveis como um cenário de filme de época, a chegada do progresso é um assunto de Estado. Por exemplo, no sopé da Giralda, em Sevilha, comenta-se com palavreado chocarreiro aquele hotel ali defronte, o EME, acabado de tomar posse da majestosa praça.

“Acojonante” (belíssima expressão do calão castelhano, intraduzível. Na tradição aproximada, “do caraças”), dizem uns. “Un horror”, “una blasfémia”, una “mierda”, vociferam outros. O consenso não se estabelece, nem aqui, nem na China. Faz parte da natureza humana, acalorar-se com a mudança, zombar da ousadia, maldizer a inventiva.

“O talento, seja lá do que for, é trocar-nos as voltas, desvendar-nos o inesperado, chocar, provocar o debate”, diz a jornalista Mangano, personagem fílmica que me cruza a viagem nas texturas do acaso e se revelará preciosa cicerone. Estamos na Bodeguita Antonio Romero, a mitigar a sede da canícula insuportável de Agosto com cañas Cruzcampo (pedem-se ao taberneiro “una Cruz”; e assinam-se de cruz) e a intelectualizar o que pertence somente e apenas ao sentimento: o gozo das viagens. Sevilha antiga, a glória andaluza dos anais no Património da Humanidade, estará perdida para o hip, o trendy, a nouvelle vague?

Eis a questão de peso entre rodadas e pires de anchoas, ovos revueltos e langostinos de Sanlúcar. Mangano duvida, e faz a sua regada tese. “Aquele mono moderno que todos injuriam na Plaza da Catedral, mais a tomada dos Alcáceres Reais por bares de tapas futuristas são notas baixas numa grande sinfonia clássica”. Conclui-se depressa que a Sevilha das carmencitas lúbricas e dos aspirantes a Don Juan, dos toreros janotas e patéticos marialvas, dos paseos depois da siesta sagrada, da Feria de Abril e da Semana Santa, da fiesta e do trote em carroças puxadas por orgulhosas duplas de garanhões (cocheiro e cavalo), das roupas de jerezano, da alegria, do fervor religioso pascal (e do mais aceso paganismo em todo o resto do ano), não tem morte anunciada.

“Há apenas mais pretextos para vir, agora que se instalou de vez a modernidade”, assegura Mangano num tom salmodiado. Após o esclarecimento pergunta: “Que vás a beber, chico?”. “Mescal, naturalmente” (pensei). Mas acabei por pedir a segunda caña negra e uns pirezinhos de camarones salpicados de sal a conselho da señora escriba.