Devo começar por confessar que não tenho sido muito leal a Madrid. Afinal foi nessa cidade que nasci, mas não cultivei uma relação estável e madura. Não estive presente nas suas distintas fases de crescimento e afirmação. Fui um consorte deplorável – a última vez que visitei a capital foi há 20 anos. Contudo, tendo aí pernoitado até aos quatro anos de idade, retive num álbum de memórias ténues alguns quadros eternos e bastantes lacunas de efemérides passadas. Há algumas semanas decidi pôr cobro a esse divórcio involuntário. Não fui eu que decidiu partir, nem foi Madrid que me excomungou. Foram os ventos da vida que me encostaram a outros destinos, uns mais predestinados do que outros. A minha residência portuguesa deve ter alimentado um certo desleixo turístico – dizem que a casa vizinha é a mais próxima, mas tenho sérias dúvidas.

A recente visita a Madrid embrulhou alguns sentimentos de bizarria, de contradição e falsa nostalgia. Não poderia sentir a perda daquilo que verdadeiramente nunca me pertencera. Restava-me realizar um estudo de alma a partir de fragmentos, muitos deles fotográficos, outros cantados pela paternidade afectuosa. Lembro-me de embarcar no Parque del Retiro e tornei a fazê-lo para confirmar que as águas ainda ondulam na mesma toada de sempre – os marinheiros, velhos conhecidos deste porto ibérico, lançaram-me olhares de conforto. Pouco a pouco, fui-me instalando na casa como se alguma vez tivesse sido a minha. Soltei as estrofes de um andaluz vergado pela Lusitânia, mas não denunciei a minha origem, a minha identidade, tal como Madrid, que se mantém impávida perante o ritmo imposto pela centralidade cultural da Europa.

Esta ciudad não é pretensiosa. Madrid é orgulhosa quanto baste, sofisticada de um modo raiano, campesino. Não há que procurar o além no aquém – a cidade é uma meseta, uma tábua larga de considerações políticas e culturais. A passagem pelo Museu Thyssen-Bornemisza revela uma certa omnipresença hispânica, as Tordesilhas mal repartida pelos seus pares. Portugal ficou com o espólio menor desse orgulho intransigente. Não refiro o Museo del Prado, para não instigar mais termos de comparação, mas Madrid, nessa medida, é cosmopolita por inerência da sua dimensão e do modo como as suas gentes a elevam – sentimos o estatuto em si, algo que não é social, que não representa a afirmação económica no seu sentido mais brejeiro. Os cidadãos de Madrid ostentam o porte da auto-suficiência, sem tocar em laivos de arrogância de outras praças. Madrid é europeia, mas não busca alcançá-la. Em vez disso, manifesta-se pacificamente num fuso horário distinto, na agenda que embala aqueles que a visitam. Nasci em Madrid. E uma parte dela deve estar dentro de mim.