Tiago Salazar, 39 anos, escritor, jornalista, viajante e andarilho profissional. Escreve desde que se conhece, fez parte da equipa fundadora da revista “Blue Travel”, liderou a rubrica “Escapadas” do jornal Correio da Manhã e colabora com diversos títulos da imprensa portuguesa. Acaba de publicar o seu quarto livro de viagens – “Endereço desconhecido” –, faz televisão, workshops de escrita de viagem e lidera viagens literárias a Istambul e Praga. Tiago não é um escritor e viajante qualquer: há uma aura e misticidade que nos contagia através das suas estórias e do amor que sente pelas viagens. Vamos então conhecê-lo um pouco melhor.

PSão aproximadamente 20 anos de viagens, caminhos, encontros e desencontros. Como é que isto tudo começou? Como é que surgiram as viagens na tua vida?

REu acho que comecei a viajar no quarto da minha avó. É uma coisa um bocado pessoana – viajar no quarto -, mas será porventura a génese de tudo. Foi no quarto que li os primeiros livros de Júlio Verne – talvez um dos maiores escritores de viagens –, do Mark Twain com as “Aventuras de Huckleberry Finn” ou do Robert Ballantyne com as “As aventuras de um rapaz nas florestas do amazonas”. Foi também naquele espaço que comecei a desenhar bandeiras pelas paredes e depois um mapa-mundo; com o decorrer do tempo acho que um verdadeiro atlas que perdurou ao longo dos anos (risos). Foi o jornalismo que me profissionalizou nas viagens, mas foram os livros e as narrativas de viagem que me abriram o mundo como eu gosto de o ver.

PE qual foi a primeira viagem física?

RA minha primeira viagem foi feita aos 18 anos e graças ao Partido Comunista Português, pois tive a oportunidade de acompanhar uma comitiva que viajou até à União Soviética de então. Foi uma viagem interessantíssima, não só por estar na companhia de um grupo de velhos bolcheviques, mas sobretudo pelo momento em que decorreu: estávamos no ano de 1991 e em plena Perestroika. Mas o melhor ainda estava para vir, pois a tentativa de golpe de estado contra o Gorbatchov, também conhecido pelo “golpe de Agosto”, ocorreu precisamente durante a nossa visita. Foi um momento extraordinário e na altura, com alguma imaginação à mistura, pensei que iria assistir a um momento histórico como John Reed tinha assistido durante revolução de Outubro de 1917.

PMas este não foi também um momento histórico?

RMomento histórico foi, agora a pujança da revolução de Outubro é que não é minimamente comparável. Aquilo foi emocionante e não posso esconder que a presença de blindados nas ruas povoaram o meu imaginário de repórter, mas foi mais a circunstância acidental de estar no sítio e na hora certa. Embora tenha saído para a rua com o objectivo de fazer qualquer coisa, apenas escrevi uma crónica “mal amanhada” e à qual não chamo de jornalismo de viagem.

PNuma única frase consegues definir o que é viajar?

R“Viajar é Ver”, como dizia a escritora Sofia de Mello Breyner. Ver no sentido não só de demorarmos suficientemente o olhar numa coisa mas, também até onde nos for possível, sermos nós parte dessa coisa. Sem qualquer tipo de presunção, eu compreendo muito bem o sentido da frase, sobretudo pelo sítio onde ocorreu: uma esplanada na cidade de Veneza. E digo isto porque, na minha mania de ócio e contemplação, as esplanadas são para mim dos sítios preferidos para escrever e ver.

PDepois de tantas viagens, pessoas e experiências, o que é que ainda te consegue surpreender?

RAs pessoas! Eu acho que as pessoas são sempre surpreendentes. São a massa mutante que no fundo justifica que um lugar exista, ou não, prolongue-se, ou não. É nas pessoas que está o apogeu e a decadência dos povos ou das civilizações. Os monumentos podem ser sujeitos a restauro, já as pessoas não. As gentes passam por um processo evolutivo que por vezes acaba por fintar os teus próprios preconceitos.

PSendo então as pessoas um elemento fundamental das viagens, sem elas não viajaríamos?

RClaro que viajaríamos! Num deserto, por exemplo, podemos estar sós, sem pessoas e numa atitude introspectiva. Já subindo uma montanha, às tantas são os teus passos que contam… Se queres alcançar o cume do Evereste, não há guia de alta montanha que te leve até lá: estamos a falar de zonas de morte onde muitas vezes só dependes de ti.

PLembras-te com frequência das pessoas que encontraste, das estórias que te contaram e das experiências de vida que partilharam? Dás contigo a relembrar-te destas coisas?

RDou e é curioso que na minha escrita há uma espécie de revisitação assídua do que há dentro desses “indígenas”. Não no sentido satirizante da questão, como é habitual no Pulido Valente, mas com um profundo respeito por todas essas gentes que me ajudaram nas minhas viagens. Sobretudo aquilo que me interessa relembrar é a memória acidental e não a provocada; aquela que nos leva à viagem interior e nos provoca aquela sacudidela.

PMas há alguma pessoa ou estória de que te lembres mais frequentemente?

REu não sou um homem de preconceitos e suspeito sempre das grandes verdades ou ditados. Já encontrei pessoas que não passam de um bando de “bunch of buskers” – um bando de pseudo – hippies – e que se estão nas tintas para a sociedade. Mas eis quando encontrei um rastafári a viver numa casa feita de uma árvore, no meio da floresta Hondurenha. Dentro daquela casa, quase de druida, estava um filósofo como eu imagino o Agostinho da Silva. Num ambiente enigmático, fantasioso e a colar o inusitado estilo Fellini, aquele homem foi capaz de me presentear com uma conversa sobre filosofia, sociologia e politica… discernida, lúcida e de uma consistência inquietante. É uma estória difícil de esquecer!

PSão estas experiências e estórias que te fazem acreditar que vale a pena, sempre… viajar?

RO “sempre” é um dos verbos que nunca se esgota. Enquanto houver máquina do tempo… enquanto houver cosmos… não há como pará-la. Podemos andar mais, ou menos, mas em algum momento vamos chegar à conclusão que tudo são etapas do mesmo caminho. Não importa os quilómetros percorridos, porque o que interessa é o que nós fazemos do que nos acontece nas viagens. Eu não me importo nada em regressar quatro ou cinco vezes ao mesmo lugar, até passar pela mesma experiência, se isso foi algo que me apaixonou.