A primeira ascensão que fizemos foi ao Pic Longue Vignemale (3298m), um desnível duro, técnico, do qual gostei particularmente, muito pelo tipo de terreno. Estou a falar de um terreno variado, com uma passagem em glaciar, seguida de uma trepada fantástica na parte final, numa zona de blocos de rocha vermelha com um declive interessante.
Saímos de Bujaruelo num trekking tranquilo, suave no início, mas logo seguido de uma ascensão mais pronunciada até Puerto de Bernatuara. Escolhemos montar o acampamento nos arredores da gruta Bellevue, já ao final do dia, sob um pôr-do-sol vermelho incandescente e ao som de uma cascata próxima, nossa companhia enquanto montávamos as tendas e preparávamos o jantar. Antes da chegada da noite, que viria a revelar-se de lua quase cheia, um verdadeiro jogo do esconde-esconde entre o pôr-do-sol e umas nuvens no horizonte, resultaram num contraste sublime, prontamente registado para a eternidade pelas nossas três máquinas fotográficas. Depois de jantar, ficámos mesmo por ali a admirar o entardecer em silêncio, ora perdidos em pensamentos, ora a tentar identificar os cumes e picos circundantes. Foram momentos de grande beleza, apenas interrompidos com a escuridão do cair da noite, onde um céu limpo recebeu milhares de pontos cintilantes. Eram horas de dormir. O corpo pedia para descansar.
Depois de uma noite bem dormida, sempre com o som suave da cascata em fundo, colocamo-nos a caminho logo pela alvorada, depois de um pequeno-almoço frugal. A ascensão foi boa e muito rápida, diria até divertida, porque este é um tipo de terreno suficientemente diversificado, mais adaptado ao meu gosto pessoal: trekking, passagem por blocos e travessia de glaciar com crampons. Foi por esta ordem que progredimos, para depois finalizar com uma escalada em grandes blocos, num trepe e destrepe ligeiro, com encordoamento em essemble.
Chegados ao cume do Pic Longue Vignemale, tirámos alguns momentos para apreciar a vista, num dia claro e de horizontes largos. Comemos qualquer coisa, descansamos um pouco e tirámos fotografias. O frio apertava, apesar de equipados apropriadamente – o vento que fazia sentir-se não estava a ajudar e a 3298m de altitude a temperatura era bem mais baixa do que no acampamento. Como a temperatura corporal desce rápido enquanto estamos parados, decidimos iniciar a descida.
Já no acampamento, umas 6 horas desde que havíamos partido, houve apenas tempo para ingerir alguns alimentos e descansar um pouco, pois havia que desmontar tendas e arrumar tudo muito rapidamente. Com as mochilas novamente às costas lá fomos montanha abaixo. Mas o mais difícil do dia estava ainda para vir: a descida em direcção a Gavarnie, com mais 4 horas de percurso. E se as primeiras horas decorreram sem grandes sobressaltos, já não posso dizer o mesmo desde que um joelho se queixou e comecei a sentir dores nos pés. Seriam bolhas!? Sim, eram mesmo bolhas. Os 14kg de carga às costas, para os meus 53kg de peso, começaram a fazer mossa… Desta vez, mesmo com não sei quantos quilómetros de montanha marcados nas solas das botas, nem a bolhas escapei. Nunca tal coisa tinha acontecido! E ao fim de 10 horas de actividade, quando as dores já apertavam, não restou outra alternativa senão caminhar mais lentamente, quando Gavarnie estava ainda a um par de horas de caminho.
O fim do dia aproximava-se rapidamente, com o sol a esconder-se por entre nuvens que apareciam ameaçadoramente no horizonte. O meu ânimo estava muito por baixo e não deixava de pensar no tempo que ainda faltava para chegar a Gavarnie. Estando eu no limiar da tolerância à dor (como é possível algo tão pequeno ser tão incómodo e doloroso?) e progredindo a um ritmo tão baixo, a que horas iríamos nós chegar? Serrei os dentes, contive as lágrimas de dor, que teimavam em correr cara abaixo, e pensei: se os peregrinos aguentam bolhas, eu também aguento!
Mas ei que despontou miraculosamente no horizonte uma cabana de pastor completamente vazia. Que alívio! Que dores! Que cansaço! Foi uma agradável surpresa e uma grande sorte, pois não demorou muito até que a chuva resolvesse dar o ar da sua graça e irrompesse sem só nem piedade. Estava encontrado um alojamento alternativo para esta noite. E apesar da noite mal dormida, com os músculos tensos a não darem descanso ao corpo, no dia seguinte acordei muito mais entusiasmada… E só não digo “fresca que nem uma alface”, porque as bolhas não tinham miraculosamente desaparecido, continuando a incomodar-me a cada passada.
Nas duas horas que demoramos até Gavarnie, foram muitas as vezes que cerrei os dentes para conter as dores, mas o certo é cheguei pelo próprio pé. Logo à chegada, num “pequeno” desvio para passar numa farmácia e comprar uns COMPEED®, onde investi 35 EUR numas super-palmilhas especiais de corrida e outras mezinhas, na esperança que resolveriam todos os males, mas que foram de pouca duração e curta memória.
Gavarnie, uma “meca” da escalada no gelo do inverno pirenaico, com o seu circuito de brutais e gigantes paredes, bem como de uma imponente cascata, merece uma paragem e visita atenta. No nosso caso, aproveitando o início de uma manhã soalheira, Gavarnie foi sinónimo de esplanada, com vista privilegiada para as imponentes paredes e cascata, onde me deliciei com uma bela tarte de maça e um cappuccino, em descontraída conversa. Uma pausa de conforto, rara e inusitada nestas semanas de montanha que, talvez por isso mesmo, soube tão bem. Pequenos “luxos”, grandes prazeres! Felizmente não os únicos deste dia…
Saboreado o pequeno-almoço, regressamos a Bujaruelo, vale de onde havíamos saído há 2 dias. Foram horas de caminhada relaxada, agora já sem as dores provocadas pelas bolhas nos pés, através de prados que se apresentavam cada vez mais verdejantes com o baixar da altitude. O dia cresceu sob um sol tórrido e um calor asfixiante, só atenuado na última hora de caminhada com a passagem num bosque fresco, já perto da chegada ao parque de campismo.
Chegamos com o sol a pique e corri, melhor corremos, para a pequena mas maravilhosa praia fluvial que ali foi instalada, ansiando por arrefecer os pés e mergulhar as pernas quentes na água gelada do rio Ara. O local é muito cénico e convida a banhos, não sendo por isso de estranhar a presença de várias turistas. E entre miúdos e graúdos que chapinhavam nas águas, alguns, talvez mais afoitos e menos friorentos, atreviam-se a mergulhos na zona mais funda! Fiquei algum tempo a observar a alegria e o frenesim instalados, mas sem deixar de absorver e saborear o sol quente do dia, a chapinhar as pernas na água e a reflectir…
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