E o processo inverso ocorre também: vejo ao longe uma figura humana, erecta, sobre uma rocha. Quando o barco se aproxima, inflecte, vai recolhê-lo. Consigo ver que fala ao telemóvel e tem vestida a sua roupa domingueira. Num outro ponto desembarca uma rapariga, bonita, bem vestida, quase cosmopolita; e fico a pensar na imensurável solidão que é habitar por ali, aonde quer que ela chame de “lar”, para uma pessoa assim, nascida na Europa ao virar do século XXI, que, no mínimo, terá um vislumbre do que é a vida numa cidade moderna.

Um pouco  à frente vejo um homem, mais velho, sentado junto à margem, na companhia de um menino. Quando dão pela aproximação do barco, levantam-se. O maior vai andando, com passo certo mas calmamente. Só o gaiato corre, e como ele corre. Penso no que vejo como uma cena épica de um filme. A câmara, acompanhando a progressão do miúdo, que salta sobre troncos de árvores caidos, sobre a cabeços rochosos, sempre ultrapassando os obstáculos, a uma velocidade constante. E nisto ouço o corte do motor. Está decidido, vamos acostar. A prancha baixa-se, e de entre os meus companheiros de viagem levanta-se uma senhora mais idosa. Quando o barco se afasta, o petiz chega finalmente, e dá-se aquele abraço, que dura segundos mas parece prolongar-se por horas. Um neto que reencontra a avó, certamente.

Sobre as águas paradas do lago, de um verde intenso, marcadas pelo reflexo de milhões de árvores, voam aves negras. Não serão as águias que inspiraram a bandeira da Albânia, mas impressionam. A travessia aproxima-se do fim. E de novo descubro que a embarcação vai encostar. Desta vez é diferente: vejo duas ou três carrinhas que aguardam passageiros. Quase metade dos meus companheiros desta manhã ficam por ali, distribuindo-se pelos transportes à disposição. Serão certamente conduzidos às suas aldeias, depois do assunto que os trouxe à “grande” cidade os ter devolvido às origens.

Chega a minha hora. Fierze à vista. Apesar de aparecer no mapa, não se trata verdadeiramente de uma povoação. É mais um aglomerado de casas que funciona como porto. Para ali encostado está um ferry que morreu de velho e se decompõe agora serenamente. Uma velha Mercedes amarela aguarda pelos últimos passageiros que certamente quererão ir para Bajram Curri.

Ainda mal o dia chegou à hora de almoço, mas sinto que vivi mais nesta manhã do que em muitos dias de viagem. Sei que ainda tenho pela frente umas dez horas até que possa regressar ao meu pouso em Shkoder, mas aquele bocadinho valeu tudo isso.  Bajram Curri é uma pequena cidade, perdida, rodeada de montanhas, que ficará concerteza isolada no pico do Inverno. Quando chego vejo que é dia de mercado. Ou talvez todos os dias sejam dias de mercado por ali. Não importa. Informo-me sobre o transporte para Tirana. Descubro que tenho ainda um par de horas de espera pela frente. Estendo as pernas por ali, compro qualquer coisa para comer a uma vendedeira e deixo os minutos correr.

O pequeno autocarro percorre caminhos sinuosos em redor de Bajram Curri. Vai recolhendo passageiros nas pequenas aldeias que circundam a cidade. Partilho o meu espaço com gente e galinhas. O que vejo pela janela é uma Europa que nunca pensei ainda existir. Tirando aquela viatura onde me sento, nada do que está sob o meu olhar mudou nas últimas centenas de anos. E isso é algo de verdadeiramente notável.

embarque no lago koman
Acabados de embarcar
ferry no lago Koman na Albânia
Ferry junto às margens do lago

Por estranho que pareça, para se chegar a Tirana, tem de entrar no Kosovo, tratar das formalidades alfandegárias, para depois, muito mais à frente, reentrar na Albânia e lidar de novo com as papeladas. E tudo isto por causa da auto-estrada que liga Pristina a Tirana, sem a qual a ligação com Bajram Curri seria quase inviável.

O resto do dia escoa-se nestas andanças. Sou largado na estrada Tirana-Shkoder, mas aquela hora, tarde avançada, já não há muitos autocarros a fazer o trajecto. Consigo finalmente apanhar um furgão que vai para cima. Pelo meio, uma enorme seca, enquanto o condutor pára na próxima cidade, procurando angariar clientes. Sem grande sorte para ele. No dia seguinte, de partida para o Montenegro, encontrarei o bom homem ao volante do seu furgão, que me saudará entusiasticamente.