Já não me recordo onde e quando li sobre o lago Koman pela primeira vez. Mas sei que na altura decidi que era um lugar onde tinha de ir. Depois, veio a decepção. A maioria das fontes de informação descreviam esta breve viagem como uma das dez mais espectaculares que se podem fazer num barco. Em todo o mundo, claro. Só que…! Sim, existia um problema: é que não se sendo um local, de ida à cidade ou de regresso à casa de família, não seria nada simples subir o Koman e regressar no mesmo dia. Aborrecido, muito frustrado, acabei por colocar o plano de lado.
Mas o destino ir-me-ia favorecer. O casal de americanos com que fiquei em Shkoder, voluntários da organização Peace Corps, revelaram-se uma infindável fonte de conhecimentos. Devido à sua actividade, tinham uma rede social que lhes permitia recolher elementos sobre qualquer situação, e, quando ouviram o meu desabafo sobre a impossibilidade de fazer a viagem de barco, logo me apresentaram a solução, fácil e rápida, na ponta da língua: que era só acordar cedo, apanhar um furgão para a aldeia de Koman, dali o barco, até lá acima, a Fierze, onde outro furgão pelos passageiros para os conduzir para a pequena cidade de Bajram Curri, onde apanharia um autocarro para Tirana, saindo na intersecção da estrada que liga a capital albanesa a Shkoder e esperando ali por qualquer transporte que se dirigisse ao meu ponto de partida. Esperem… eu disse “solução fácil e rápida”? Bom, se calhar estava a ser optimista, mas quando o Terry e a Tiffany me transmitiram o plano, de forma tão convicta e entusiasmada, senti que tinha finalmente na mão a chave para esta incursão fabulosa.
De modo que no dia seguinte, lá sai eu para a rua, com a primeira luz solar. Ainda mal tinha dado os primeiros passos em direcção ao local da cidade onde os furgões para Koman saiam, ouvi uma explosão. Na altura não me preocupei, concentrado que estava em chegar a tempo ao meu transporte. Mais tarde, muito mais tarde nesse dia, que tão longo foi, o Terry falou-me do atentado que tinha mandado pelos ares um carro com o seu proprietário lá dentro. Segundo os primeiros indícios, o homem, um comerciante, teria sido vítima de um ajuste de contas de contornos duvidosos.
A viagem até ao pequeno porto de Koman fez-se sem incidentes. A carrinha ia quase vazia. Meia dúzia de passageiros sentavam-se, sonolentos, nas cadeiras da frente. O que seguia lado a lado com o condutor, especialmente mal-encarado, vir-se-ia a revelar o capitão da embarcação, tomando o comando das operações assim que entrou a bordo. Mas antes havia ainda uma viagem de cerca de duas horas, por uma Albânia profunda, despovoada. Em linha recta, são 30 km. Mas as voltas que a montanha dá e a condição precária do asfalto transformam essa pequena distância numa odisseia matinal.
A parte final deste troço vai deixando antever o que nos espera. O lago Komam mostra-se, do lado esquerdo, sublimado pela luz matinal. E depois, avista-se brevemente uma barragem, entra-se num túnel, e, quando se sai de novo para a superfície, o mundo está virado de pernas para o ar. Depois de quilómetros e quilómetros sem ver vivalma, o que nos cerca é um búlicio. Há barraquinhs de vendas de comes e bebes, muitos carros, outros furgões, vindos sabe-se lá de onde, e cafés e gente, tante gente por ali a cirandar. Ainda estou a digerir esta súbita aparição quando a carrinha se detém e ali estou eu, olhando em redor, confuso com o choque.
Daqui partem duas embarcações. Um ferry capaz de transportar viaturas, bem maior, e um pequeno barco apenas para passageiros, de dimensões muito mais reduzidas. Os meus amigos americanos tinham sublinhado a importância de apanhar o pequeno. Falaram-me no ambiente rústico que o envolvia, na forma como acostava sem pré-aviso para apanhar e largar passageiros. E eu, bem mandado, sem fazer ideia do que estavam para ali a falar, segui-lhes o conselho, sem imaginar a experiênca incrível que essa simples escolha me proporcionaria. Mas já lá vamos.
Para já estou para ali, sozinho, naquela agitação portuária. Apenas vejo um barco, e é o pequeno. Pessoas desembarcam. Aparentemente acabou de chegar, da travessia inversa. Pouco depois começam a entrar os passageiros para o percurso até Fierze e sigo-lhos o exemplo. Já antes, por via das dúvidas, um simpático jovem, funcionário, me tinha informado em bom inglês que aquele era a lancha que eu queria.
A viagem inicia-se. O cais fica para trás, e ainda com este à vista surge no horizonte o grande ferry carregado de viaturas. Cruzamo-nos, e a partir dali embrenhamo-nos na solidão daquelas margens agrestes, de encostas ingremes, por vezes a pique, sem traços de presença humana. O motor vai marcando o ritmo, com aquela toada pausada de um velho diesel.
O céu apresenta-se austero, em tons de cinzento que chegam ao plúmbeo. Naquelas gargantas que se estendem por quilómetros o vento acelera, e colide comigo, que venho em direcção oposta, herói resistindo ao frio indescritível que se sente fora do habitáculo. Lá dentro, albaneses incrédulos com a teimosia do estrangeiro, sentados de forma ordenada, olhares pousados em mim. De tempos a tempos junto-me a eles, durante os minutos que necessito para regularizar a circulação sanguínea. E o barco vai avançando, deliciosamente devagar, revelando curvas e contra curvas, cotovelos de ângulos inimagináveis. Por muito mais do que uma vez parece dirigir-se para uma morte anunciada, navegando direito a uma parede intransponível, para que, apenas à última da hora, seja revelado num passe de magia uma aberta, por onde a casca de noz se escapule.
Se a paisagem é de cortar a respiração, há um fenómeno que marca esta viagem: de tempos a tempos o barqueiro corta a acelaração do motor e, ao fim de um par de vezes, já sei o que se seguirá. A embarcação aproxima-se suavemente da margem, uma prancha de metal desce sobre uma qualquer rocha mais sólida e um passageiro salta lá para fora. Isto repete-se mas por mais que observe a cena não consigo compreender… para onde vão aquelas pessoas, subindo, sempre subindo, escarpa acima, por caminhos insuspeitos, desaparecendo na imensidão verde que cobre as encostas, para reaparecerem mais acima, apenas um ponto no matagal, para serem de novo engolidos, até que o sumiço se torna definitivo. Não se casas isoladas nem vestígios de presença humana. Passam-se quilómetros e quilómetros e pensamos estar na mais remota das paragens deste planeta, e, contudo, estes passageiros dirigem-se a algum lado, sabe-se lá a que distância ou quanto tempo demorarão a chegar onde se dirigem.
Obrigada Ricardo por mais esta viagem que me ofereceste