Matilde escreveu este livro entre as suas viagens de Lisboa a Rio de Janeiro.

RIO DE JANEIRO – LISBOA

um dia você
adora meus óculos
adoro os teus óculos
no dia seguinte
não quero que venhas na fazenda
três dias antes
você ia adorar este lugar
você quer vir até à fazenda?
um dia eu rasgo
o tecido celular do rosto
realizo um sorriso constante
que atravessa o morro
o ponto mágico do morro
rasgão alegre que fulmina
o veio mínimo da folha
de amendoeira
e pelo feixe de luz tropiquente
vai parar na cara de João
vendedor de suco no leblon
em ricochete João grita açai!
qualquer dia eu vou e chego

no outro dia
a cidade se aborrece
desdignificada pela
gigante roleta
que se chama medo
o urubu fica empoleirado
na trave enferrujada
daquilo que já foi suporte
ao cartaz que anunciava
o novo mundo das piscinas
fosforescentes
o pássaro suspenso
olhando a via rápida
e catando caca
debaixo da unha
temendo o gira girar
da pequena roda
que circula sorte e azar

Livro Jóquei de Matilde Campilho
Ver capa do livro
um dia você
escreve para seus pais
falando sobre o amor
quarenta dias depois
teus pais te escrevem
falando sobre redes de pesca
e o perigo das redes de pesca
um dia você me envia uma carta
depois a outra
o rasgão explode
recordando ainda outra carta
de alguns meses antes
o postal eterno que dizia
still crazy (after all
these years)
faço voto de silêncio
mas na sacrilização
horária das avenidas
eu penso que você
sua mãe e seu pai
conversam muito
sobre peixes
e isso mantém quieta
a roleta negra
e que isso mantém aparada
a unha do urubu
e que isso faz homenagem
a João e à fruta espessa
que brilha vermelha
em cada copo da minha cidade

um dia você diz que me a****
eu a****-te
no dia seguinte
a amendoeira se expande
e floresce cinco folhas mais
nesse dia reparo
que estamos contribuindo
você e eu
para o florestamento
da cidade
de duas cidades
faço votos de silêncio
mas na sacrilização horária
da respiração eu penso
que apesar da sala de casino
abrigo da gigante roleta do medo
apesar dos golpes de gmt -3
apesar da fita de seda que fica
ondulando sua medida de 7800 km
estamos dando utilidade ao amor
alargando os braços dos jacarandás
partindo as inúteis linhas de fronteira
e fazendo do mundo
a gigante floresta.

Matilde Campilho é natural de Lisboa, cidade onde estudou literatura e história da arte. No ano de 2010 mudou-se para o Rio de Janeiro, no Brasil, onde ficou a viver por três anos. Publicou em diversas edições brasileiras e regressou a Portugal há alguns meses. Jóquei é o seu primeiro livro.

Crítica de Imprensa

«Jóquei, o primeiro livro de poemas de Matilde Campilho, é um álbum de Verão. Um Verão de todas as estações, transatlântico, luso-brasileiro na topografia Rio-Lisboa, com um português em dupla nacionalidade e dupla grafia, coloquial e feliz, saudoso e complicado. Os poemas, em verso e prosa, assemelham-se a climogramas, medem atmosferas e temperaturas. Contam muitas vezes histórias de trintões com a coragem de adolescentes, meninos e meninas em mergulhos desmedidos e destemidos, com deslumbramentos e desapegos, amores mercuriais, ternuras e enigmas. Isto são poemas, diz-se a dado passo, mas de que fala um poema? De tudo: botecos e viagens, Eliot e o «Financial Times», a vibração de um corpo humano e um emblema da Federação Uruguaia de Esgrima. Entusiasta e inventivo, «Jóquei» recorre a diminutivos e hipérboles, a enumerações e anáforas, a uma imagética fulgurante e a bastantes referências herméticas, quase sempre para nos garantir que «esta coisa da alegria ainda vai dar muito certo». É uma crónica (ou crônica) do achamento, que descobre um novo mundo numa antiga língua comum.»
Pedro Mexia

Jóquei

de Matilde Campilho

Edição / impressão: Maio 2014
Páginas: 144
Editor: Tinta da China
ISBN: 9789896712136